domingo, 23 de fevereiro de 2014

Eles estão vivos

Vim para a Cidade do México porque me disseram que aqui vivia o escritor que estudo, um tal Juan Rulfo. Na verdade, ele faleceu em 1986, e suas duas obras canônicas, o livro de contos "O chão em chamas" (El llano en llamas) e o romance "Pedro Páramo" foram lançados na primeira metade da década de 50. Depois disso, o autor não publicou mais literatura. Em 1980, realizou-se aqui na capital mexicana, no Museo Nacional de Bellas Artes, uma exposição de suas maravilhosas fotografias. Era, portanto, também, um fotógrafo de qualidade. E foi isso que se conheceu de toda a sua obra até bem pouco.

Foi isso que conheci também até antes dessa viagem. Já aqui, me deparei com outras obras de Rulfo, em livros da Biblioteca Central da UNAM, cujo mural feito à maneira de mosaico com pedras de diversas regiões do México, pelo artista e arquiteto Juan O'Gorman junto com Gustavo Maria Saavedra e Juan Martínez, toma todo o prédio de doze andares de livros e salas de estudos. Há ali diversos livros com outras fotografias de Juan Rulfo (até o momento, tive contato no Brasil com o "100 Fotografias", publicado pela Cosac Naif, o Juan Rulfo photographer, versão em inglês de uma edição espanhola com outras tantas fotografias e o Oaxaca).

Biblioteca Central - UNAM (Mural de Juan O'Gorman)


Também me deparei com um livro editado pelo diretor da Fundação Juan Rulfo, Victor Jiménez, quem faz parte da bibliografia da minha dissertação, Alberto Vital, o professor que assessora meu intercâmbio e biógrafo de Rulfo e Jorge Zepeda, jovem doutorando que se especializou na recepção das obras escritas do mexicano. Nesse livro, me deparei com obras que me eram completamente desconhecidas, publicadas a partir dos manuscritos do escritor-fotógrafo. Primeiro, uma tradução do poema "Elegias a Diuno", de Maria Rainer Rilke, feita por Rulfo a partir de outras duas traduções do alemão para o espanhol, depois, anotações sobre algumas construções arquitetônicas do México. E, enfim, o texto "Castelo de Teayo" (Castillo de Teayo), uma espécie de conto em que o narrador é o próprio Juan Rulfo quem viaja em busca das ruínas desse castelo, localizado em um povoado em Veracruz.


Nenhuma de suas demais obras escritas simulam ao leitor a consonância entre autor e narrador que se encontra em Castillo de Teayo. Nunca Juan Rulfo me falou tão diretamente como através deste pequeno conto. Sabia que aqui sentiria maior proximidade com seus estímulos, com seus motivos, mas não esperava que fosse "ouvi-lo" tão diretamente na voz de narrador literário (não me refiro àquela voz das cartas à Clara Aparício, publicadas no livro Aire de las Colinas, em que a voz de Rulfo se dirige direta e unicamente a sua eterna amante).

Pelo instante em que durou aquela leitura, Juan Rulfo reviveu.

Ainda, nessa semana, após essa leitura maravilhosa (em todas as concepções que a crítica da literatura latino-americana vem bombardeando essa palavra) fui convidada para um almoço, pelo professor Vital, com uma especialista nas fotografia de Rulfo e com o arquiteto Victor Jiménez. Uma das frases de Jiménez a respeito da obra literária e fotográfica de Rulfo foi a responsável pelo desenvolvimento de minha pesquisa. E lá fui eu, conhecê-lo.

Escultura totonaca no Castelo de Teayo, 1950. Foto de Juan Rulfo (www.clubcultura.com) .


Nos encontramos em um restaurante espanhol (o que só sensibilizou minha habilidade, ainda que precária, de fazer relações; não pude deixar de pensar na ironia de discutirmos Juan Rulfo em um restaurante, enfim, criollo). Victor Jiménez e a doutoranda Paulina Villán Vargas já estavam sentados à mesa quando cheguei. O professor Vital nos apresentou. Até mesmo o "hola, mucho gusto" que eu disse ao arquiteto me pareceu ignorante. Sentei-me entre a doutoranda, mais jovem e com quem criei uma simpatia imediata, e o professor Vital, quem já conhecia. Escolhíamos a comida no cardápio em que tudo parecia saboroso quando chegou um senhor de cabelos de um branco brilhante, óculos de lentes redondas e aro de metal fino à frente dos olhos mel que ajudavam a compor sua expressão simpática. Era Pablo Rulfo, um dos três filhos de Juan Rulfo. Sentou-se ao meu lado, no lugar que lhe ofereceu o professor Vital.

Nem preciso dizer que fiquei quase totalmente muda nesse almoço. Falava apenas quando era imprescindível. E ouvia, porque me pareceu que o que mais me beneficiaria naquele momento era ouvir aquelas pessoas, aqueles nomes de bibliografia que na maioria das vezes (sempre, no meu caso) nós estudantes associamos a nomes de mortos. E eles mencionavam Rulfo: "tu padre sacó aquellas fotos, te acuerdas?", "sí, pero era muy chiquito cuando las tomó". O nome Rulfo ganhava vigor, vitalidade, ocupava um lugar à mesa. Ali, ao meu redor, naquele banquete platônico, todos estavam vivos. Diferente da surpresa que revela a leitura de Pedro Páramo, fui tomada por uma surpresa totalmente oposta. Eles estavam vivos! E me senti mais viva também, com ainda mais vontade de estudar, de conhecer, de saber e de continuar a adentrar esse caminho fantástico que escolhi, o de lidar com as obras de Juan Rulfo.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Viajo porque preciso, volto... por quê?

Semana em que as leituras para a pós-graduação se somam. E em que os problemas burocráticos para emissão da bolsa de estudos e para a inscrição na universidade, embora já assista às aulas, começaram a ficar mais dramáticos. Problemas esses que impedem com que vá a alguns museus, que com a credencial da UNAM seriam gratuitos, e que viaje para fora da cidade - o passeio que esperava, inclusive, não ocorreu, se adiou mais uma vez, aumentando ainda mais o mistério que me aguarda nas pirâmides aztecas.

Muito se esquivou nessa semana. Para o meu afã de conhecer mais, de observar milimetricamente, de dissecar tudo, o ar mexicano me soprou uma cautela quente de volta. Com o adiamento do passeio para Teotihuacan, passeei pelo centro da cidade, mais uma vez, mas agora com menos pressa, acompanhada, entendendo melhor algumas dinâmicas, que em meu primeiro passeio por ali me assustaram, e explorando melhor os edifícios que circundam a Plaza de la Constituición.

Dessa vez fui surpreendida pela multidão do domingo ensolarado. Os mexicanos realmente devoram cada centímetro desses quilômetros de espaços livres que possuem, junto com suas comidas callejeras inumeráveis. Nessa segunda caminhada pelo centro, conheci o Palacio Nacional, onde estão alguns imensos murais de Diego Rivera. No mais ostentador, conta-se a história mexicana com início em cenas da guerra entre indígenas e europeus na base do mural (aqueles com expressão de coragem ou de dor, esses com expressões de ódio), culminando, no alto da pintura, nas figuras de governantes campesinos que ostentam uma faixa com os dizeres "Tierra y Libertad".

Mural de Diego Rivera no Palacio Nacional

Entre os murais, uma moderna exposição sobre os mayas incrementa ainda mais esse afã de narrar sua história que se vê em todos os cantos da capital mexicana. Com algumas peças do Museo de Antropología e painéis interativos que simulam os diversos territórios maias ao longo da história, a exposição atraiu uma multidão ruidosa que observava tudo através das lentes de suas câmeras e celulares frenéticos. Eu mesma me posicionei grande parte da exposição atrás das lentes da minha pequena câmera, mas porque queria mostrar a uma grande amiga brasileira a cerâmica indígena. Mas as fotos não traduzem exatamente o fascínio que me causa a arte pré-colombiana, como já mencionei anteriormente e acho que continuarei a repetir até o fim da minha viagem.

A Plaza de la Constituición também colaborou para a narração do que é esse México que se mostra, cautelosamente, para mim. Uma majestosa exposição militar isola toda a praça, impedindo com que a conheça verdadeiramente (na primeira caminhada pelo centro, a praça já estava isolada pelos militares, mas a exposição ainda não tinha sido montada). A enorme bandeira ao centro da praça apenas deixa-se ver através do jogo de verde musgo e metal negro que a rodeia. E, mais impressionante, era a fila quilométrica de pessoas que se amontoavam para conhecer essa exposição. Eu a dispensei, sem receio.

E à frente da praça que se esquivou de mim, completamente tomada pelos militares, a Catedral me ofereceu suas entranhas. Participei de uma visita às "campanas" da igreja, que são sinos que se encontram em suas torres. Entramos passadas as seis horas, então logo as escadas de pedra tomaram o ar melancólico do início da noite. Lá em cima, ouvi a história de uma campana possuída, que matara a um dos meninos que no século XVI tinha a perigosa missão de entoá-la, movimentando o sino de toneladas com o próprio corpo. Para sinalizar sua maldição, o sino leva pintada uma cruz vermelha. O sino amaldiçoado olhava na direção da Plaza de la Constituición, lá embaixo, que bebia das luzes da noite recente, comungando com o militarismo tão exaltado em nossos países latino-americanos. O século XVI sobressaltou mais vivo do que nunca nessa noite na catedral.

Exposição do Exército Mexicano na Plaza de la Constitución vista de uma das torres da Catedral.

Mas ao mesmo tempo que uma sensação triste me invadia, a impressão que me causaram as ruas mais vazias do centro - e mais perigosas, segundo meus amigos mexicanos - me revelava que o México, sim, tem sua cara própria, apesar da imposição tão drástica da cultura ocidental. Caminhamos pelas ruas atrás do Palacio Nacional à procura de um altar feito à Santa Muerte que, segundo esses amigos, havia por ali, na rua. Me empolguei muito para tirar fotos, já que não estarei em novembro, na Fiesta de los Muertos, e não vou viver essa grande celebração. Perguntamos a um policial onde estava o altar, pois eles não tinham certeza da localização, e ele nos apontou para a frente. Por aí seguimos. Nada. Encontramos outra igreja de portais grandiosos e uma rua tomada por crianças, perguntamos a uma delas, não sabia informar. Andamos mais umas quadras e perguntamos a um vendedor de rua, ele nos apontou para a esquerda. Seguimos. Nada. Perguntamos para um outro, nos apontou a direita. Nada. E de repente nos veio a impressão de que talvez não quisessem nos revelar onde de fato estaria o altar, pois nitidamente estávamos ali apenas para tirar algumas fotos, quem sabe postá-las no Facebook, para que fossem celebradas ali. Talvez, não quisessem que blasfemássemos seu altar feito com tanto respeito e fé. O México esquivou-se mais uma vez.

E justo por isso me senti bem. Que se esquivem, que se escondam e guardem sua cultura de nossos olhares blasfemadores. E se guardem de toda a ostentação militar-cristã do centro do Zócalo. Que se mantenham vivos, mesmo que às esquinas sombrias das ruas abandonadas do centro que ninguém visita. É um consolo, de qualquer forma, saber que em algum lugar escondido do Zócalo o México que mais me agrada está muito vivo celebrando a sua Santa Muerte.

PS: E nessa sexta-feira foi o dia de São Valentim. Exibiram, na maravilhosa Cineteca Nacional, ao ar livre e de graça, o filme brasileiro Viajo porque preciso, volto porque te amo. Sabia que não era uma história de amor, apesar do titulo. É a história do nosso Nordeste, a história da transposição de águas do São Francisco, a história da pobreza que assola grande parte do nosso país. Mas também a história de uma viagem. A história de alguém que procura motivos para ter partido e, logo em seguida, para regressar. Os meus motivos, para ambas ações, eram claros, mas agora tudo começa a se embaçar. Precisava dessa viagem? Agora, me parece mais do que nunca que sim. Volto por quê? Ainda não sei.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Revista Capitu

Agora, os posts deste blog serão publicados, também, pela Revista Capitu. O primeiro post já está lá, com umas pequenas modificações.

Nesse fim de semana, farei um passeio muito esperado. Em breve estará tudo aqui!

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Duas semanas

México, ainda trocamos olhares de estranhamento.
Essa foi a semana do assentamento da rotina, da confecção da agenda, da organização, já que estou aqui para estudar, antes de tudo, talvez. Não, não acredito que seja assim porque antes de tudo estão essas novas sensações que me assaltam a cada dia vivido nesse país. E elas vêm de diferentes direções, pertencem a distintos motivos. Me tomam, seja pelo gesto de um senhor que encontrei casualmente no trolebús que pego para ir à universidade (ele disse que sabia que eu estudava na UNAM, pois me via todos os dias no ônibus e, depois que disse ser uma intercambista brasileira, me deu seu cartão, dizendo que podia escrever-lhe caso me faltasse alguma coisa), seja pela garoa que deixei molhar meu rosto com pleno gozo uma noite voltando da aula (e disseram que só choveria em julho e que o ar seco incomodaria cada vez mais), seja pelas ruas de Copilco onde meu grupo de intercambistas se juntou à procissão de estudantes que passam por ali diariamente e que fazem com que os carros mal possam circular (aqui, na verdade, os carros não circulam, ziguezagueam pelas avenidas tentando achar brechas no tráfego intenso, infringindo todas as leis de trânsito existentes e ainda por ser inventadas).

Agora, caminho pelas ruas próximas à casa onde estou... morando... já distraída, já perdida em pensamentos, sem me ater a cada esquina, a cada detalhe, para não perder a rua em que deveria entrar. Já não confundo mais um chili (pimenta) com um nopal (cacto comestível) perdido num taco aparentemente inocente (nem me iludo mais com o "no pica mucho" [não é muito apimentado] dos mexicanos). Já sei usar o "guey" e o "híjole", recursos enfáticos do espanhol mexicano, usados para chamar a atenção de alguém e para expressar assombro/surpresa, respectivamente. Mas ainda somos desconhecidos, eu e este país. Nessa semana, fechei-me num bairro (aqui se diz "colonia"), numas ruas repetidas, no meu caminho que já virou caminho de sempre (casa-universidade-casa), porque o cansaço da primeira semana foi tão intenso que quis - precisei - descansar. E adiei algumas sensações que ainda estão por vir.

Troquei um passeio a Teotihuacan por um passeio de trajinera (que eu diria ser uma gôndola mexicana) em Xochimilco, onde naveguei pelas águas calmas dos canais da delegação ao sudoeste da Cidade do México, onde algumas tribos indígenas pré-colombianas se instalaram e costumavam também navegar. Sobre as águas destes canais, ouvi os mariachis cantar suas músicas típicas, tomei cerveja com pimenta, limão e sal (qualquer item comestível tem sua versão que "pica" por aqui) e cantarolei músicas brasileiras para os mexicanos ouvir.

E, ainda na bucólica trajinera, vi a senhora que, ao lado de um adorno de caveira, na varanda de uma casa à beira de um dos canais, me dirigia olhares de estranhamento. Em meio à minha semana de descanso, os olhos anciões me lembraram:

- Ainda não te desvendei, México. E nem você a mim.