quinta-feira, 14 de agosto de 2014

E então, o que aconteceu?

Chegou o fim da viagem. Fui tomada por uma letargia irrefreável. Não conseguia escrever nada, não sabia como organizar a ideia de que estava voltando. Não sabia se tinha que olhar tudo ao redor com mais detenção, cada parte, cada detalhe, por um, dois, três minutos. Não sabia se tinha que escutar com mais cuidado, se tinha que comer com maior pausa. Tudo porque não sabia como agir na despedida. Não sabia de que tipo de despedida se tratava. Estava só. Queria ficar só e andar pelo centro da Cidade do México. Tirar foto das ruínas do Templo Maior, ouvir os homens do realejo, um em cada esquina, ouvir a gravação da compradora de eletrodomésticos velhos que entoa por todas as ruas da cidade, eu queria colocar a cidade dentro de mim. Não sabia me despedir. Ainda não sei.

Não falei de Taxco, para onde viajei pouco antes de ser dominada por esse sentimento de partida que se aproximava. A cidade está localizada entre montanhas, parece que está pendendo de uma delas, na verdade. Em meio às curvas fechadas feitas pelo carro que me levava até a antiga cidade mineira, e em meio a uma náusea que me cobrava esforço para manter o estômago dentro de mim, via as casas brancas se assomando na montanha muito íngreme mais adiante. A cidade realmente parecia estar à beira de um abismo. Eu quase vomitei.

Andando pelas ruas de pedras, onde se amontoavam lojas e lojas de acessórios de prata, algumas de artesanato, tudo à venda, estava a igreja de Santa Prisca, fotografada por Juan Rulfo. Quis encontrar o ponto de onde ele a fotografou. Choveu e foi difícil subir as ladeiras de pedras molhadas sem escorregar, na busca da visão daquele que me levou até ali.

Igreja de Santa Prisca à noite, pelo amigo e companheiro de viagem German Carrasco.

Após muitas subidas, às vezes tínhamos que nos apoiar nas janelas das casas que margeavam as ruas para seguir caminho, chegamos a um pátio que tinha, a um canto, uma pequena igreja. Nos voltamos à direção da igreja de Santa Prisca desde este pátio. A vista era quase a mesma da foto, mas pareceia que Rulfo se encontrava ainda mais acima de nós quando fotografou. Parecia que havia subido na torre daquela pequena igreja e de lá pôde ver a igreja principal com maior destaque. Na foto, o pátio da igreja pequena também é visto, e é por onde caminha uma mulher com um cesto na cabeça. Pensei que poderia remontar mentalmente toda a cena que vira Rulfo se alcançasse exatamente o mesmo ponto em que estivera para aquela tomada.

Igreja de Santa Prisca (no alto), por Juan Rulfo.

Entramos na pequena igreja e pedimos ao padre, que estava passeando por entre os bancos vazios, para subir na torre. Explicamos que eu vira do Brasil para isso. O padre acedeu sem grandes interrogações. Subi por uma escada estreita de espiral, tentei não olhar para baixo pois tenho vertigem, o que não mencionei a nenhum dos que me acompanhavam. Ver desde o mesmo ponto de vista de Rulfo se sobressaía aos meus medos. Lá de cima, via-se o pátio se estender até a ladeira próxima e, mais abaixo, a igreja de Santa Prisca. Não era ali. Na foto de Rulfo a igreja de Santa Prisca ficava acima do pátio que fazia perpendicular com o local em que se encontrava o fotógrafo. O padre disse que possivelmente o fotógrafo havia mirado sua câmera, lá em meados dos anos 50, desde um outro bairro próximo, que hoje em dia era bastante perigoso para turistas. Frente à chuva e ao perigo da ultra-pós-modernidade, desisti de seguir a busca.


Na volta de Taxco me segurava com força na porta do carro, com medo de ser arremessada em alguma curva e cair nos abismos do mundo.



quinta-feira, 29 de maio de 2014

Guanajuato e os 40 dias de tremor

A quatro horas da capital mexicana, na minha primeira vez em direção ao norte, deparei-me com a cidade de Guanajuato, capital do estado de mesmo nome. Cercada por montanhas e repleta de casas coloniais me lembrou a Minas Gerais que nunca conheci. Em Guanajuato não há nenhum resquício da cultura pré-colombiana, por isso se parece tanto às cidades coloniais brasileiras. As montanhas estão cortadas por túneis de mineração, que hoje em dia são atração turística, mas que na colônia serviram para a exploração dos espanhóis. No topo de uma das montanhas está uma estátua cor salmão, de um homem baixo e gordo apontando o céu. Poucos tiram fotos ou se detêm para a observar a estátua. Trata-se de El Pípila, antigo minerador que teria atuado na insurgência para a expulsão dos espanhóis da cidade e na posterior independência do país, em 1821.O que chama mais atenção dos turistas é a linda vista da cidade, sua catedral, a bela Universidade de Guanajuato com suas escadas de pedra branca e as casas coloridas como miniaturas lá embaixo. Sabe-se que El Pípila provavelmente tenha falecido devido a doenças causadas pelo pó das minas. Não sei se sua história é contada pelos vários "guias turísticos" que se oferecem a contar a história da cidade por troca de alguma "propina". Soube dessa história assistindo a um programa turístico na televisão. El Pípila permanece esquecido no topo da montanha de Guanajuato, mas não se cansa de apontar o céu, sempre azul em todos os dias em que durou a viagem.

El Pípila, Guanajuato.

As ruas estreitas de pedra, as casas coloniais coloridas da descida à cidade lembravam o Pelourinho brasileiro. Lá embaixo, uma multidão tentava passear pelas ruas do centro, onde está a igreja com o ruidoso sino que entoava todos os dias a partir das seis da manhã para chamar os fiéis à missa. Nós, os turistas pecadores, nos remexíamos na cama tentando abafar as campanadas com o travesseiro. Porém, antes dessas campanadas, o sono nos abençoou sem sobressaltos, enquanto a capital mexicana, pela quarta vez este ano, tremia novamente. Soube do tremor ao acordar e checar as redes sociais. Agradeci a Guanajuato pela noite tranquila.

Guanajuato, vista do mirante El Pípila.


E falando em tremores, após os dois tremores que senti na capital, sentia estranhas tonturas e devido a qualquer movimento, fosse da cadeira onde me sentava, um pouco bamba, fosse do colchão macio da minha cama, meu coração acelerava e a cabeça andava às rodas. Soube, em artigos da Internet, que os tremores deixam uma sensação de tontura por até 40 dias após sua manifestação. Conto os dias para que a tontura passe, para que não tenha mais medo do chão, para que possa enfim aproveitar o meu colchão e ter uma noite tranquila, como aquela de Guanajuato. Aqui na capital, sem as campanadas da igreja para me despertar às seis da manhã, mas com o carro do comprador de ferros que entoa todas as manhãs a gravação de uma voz estridente de menina: "se compran tambores, refrigeradores, estufas lavadoras, microondas o algo de fierro viejo que vendaaaaaa".

domingo, 20 de abril de 2014

Segredos de terremoto e tempestade

Passei doze dias longe do México. Voltei em meio à semana santa e encontrei um DF mais tranquilo. Tentei combinar uma viagem rápida à praia, mas cheguei tão cansada que preferi dividir com a capital mexicana uma semana preguiçosa. Caminhei pela Avenida Reforma, tirei minha primeira foto do anjo da Independência, que sempre me lembra o anjo germânico, da Vitória, em Berlim (não porque estive em Berlim, mas por causa dos filmes Asas do Desejo e Tão perto, tão longe do Wim Wenders que em suas maravilhosas panorâmicas mostram a estátua). Tentei chegar ao norte da cidade, mas parece que esse norte nunca chega. Cuitlahuac, onde estive grande parte desses dias, fica ao "centro-norte", como me disse Inti. São quarenta minutos de metrô do sul até esse centro-norte. E não encontro o norte nessa cidade. Cuitlahuac quer dizer "extremamente seco" em nahuatl, mas essa semana me deparei com minhas primeiras tempestades defeñas. Não podia ser de outra forma, uma vez que somente uma enxurrada poderia resultar da volta de uma cidade pós-moderna onde estive nos dias anteriores e onde se despertaram inúmeras dúvidas sobre o meu futuro (o que é isso, me pergunto). Haviam dito que só choveria em junho, mas as tardes da semana santa se revesaram entre um calor que lembra vagamente o Brasil e tempestades no fim da tarde, que esfriam a noite. De qualquer modo, estava tudo bem para quem queria descansar de uma cabeça que andou às voltas no mundo.

Seria assim, não fosse por um pequeno detalhe ocorrido na manhã da sexta-feira santa. Havia acordado e conversava com uma amiga pela Internet quando sinto uma náusea. No dia anterior tive pressão baixa, logo pensei que não estava bem, talvez por causa da minha viagem ao exterior que foi bastante intensa, talvez por um acontecimento na minha volta que também intensificou minha experiência mexicana. Porém, quando olhei para as paredes do quarto notei que elas ondulavam, os quadros querendo saltar conforme o balanço. Escrevi "terremoto, mo" e me levantei. O chão parecia de gelatina, as coisas batiam ao meu redor, meu coração saltava. Pensei em abrir a porta e sair, mas fiquei paralisada. Enviei uma mensagem a um dos moradores da casa, que estavam viajando (justo nessa manhã, estava sozinha). "Tranquila", me respondeu. E logo o tremor passou. Não dentro de mim, minhas mãos tremeram por ainda uns minutos. Depois soube que foi um tremor de 7.2 graus na escala Richter, com epicentro mais ao sul do país, no estado de Guerrero. Não houve danos nem feridos no DF.

Na Cidade do México, o descanso é um tremor, a experiência de viver aqui é esse terremoto que me deixa sem chão, ao mesmo tempo em que é a chuva que me refresca as tardes quentes.

domingo, 30 de março de 2014

Sol e chuva

Em menos de 40 minutos da capital mexicana, onde casas, prédios, asfalto, carros, ônibus, metrô, pessoas apressadas se amontoam, tentam passar, esborrifam fumaça e poluição, no conhecido cubismo da Guernica moderna que pinta a guerra de cidade grande, chega-se ao sítio arqueológico de Teotihuacan, a antiga cidade de pedra. Várias populações se alternaram na cidade encontrada pelos aztecas já abandonada por povos anteriores onde se encontram as pirâmides do Sol e da Lua. As indicações nas placas que guiam o passeio pela Calzada de los muertos até cada uma das pirâmides pouco diz sobre essas populações. Afirmam apenas que cerca de 85 mil pessoas viveram ali, no auge da cidade, cultuando Queztalcoatl, o deus em forma de serpente emplumada que mostra sua cara escupida nas pedras que circundam as pirâmides. O nome da avenida que corta a cidade de norte a sul tampouco é esclarecido, comentado-se apenas que os aztecas a teriam denominado assim por pensarem que as pequenas pirâmides que a margeiam eram tumbas. Outras pirâmides estão subterradas sob as ruínas da cidade que vemos erguidas ainda hoje. Ali os espanhóis não interviram de forma a desmoroná-la como fizeram com o Templo Mayor, subterrado no poluído centro da Cidade do México. O que fizeram foi tirar algumas pedras das pirâmides para com elas erguerem seus templos católicos em outros lugares.

Ruínas de Teotihuacan (à esquerda e ao fundo, a Pirámide del Sol e ao fundo e ao centro, a Calzada de los muertos).

A ansiedade em conhecer a cidade e a memória do esforço que foi subir o cerro de Tepozteco fez com que a subida ao topo da pirâmide do Sol ocorresse com relativa facilidade. De lá de cima o sol impiedoso seguia nos queimando, as pedras da cidade não eram capazes de desenhar uma sombra ao redor das pirâmides, e a Calzada de los muertos reluzia dourada. Diante daquele sol chapado, vigorante, é fácil compreender porque foi visto como um poderoso deus e teve a maior e mais trabalhosa pirâmide de Teotihuacan oferecida a ele. Aqueles povos adoravam exatamente aquilo que estava ao seu redor, identificavam sua atuação direta nas suas vidas, a toponímia de suas cidades e templos reflete a correspondência direta entre os elementos da natureza, divinizados, e a realidade terrena. Teotihuacan é justamente o lugar onde até mesmo os homens se convertem em deuses, segundo sua tradução do náhuatl.

E um dos motivos para essa divinização talvez se dê também por todo o mistério que encobre a história da cidade. Quem eram os homens que povoaram a cidade antes dos aztecas? Como foi realizada a construção daquelas pirâmides imensas, feitas de pedras que pesam toneladas? Grande parte de Teotihuacan está proibida para a visita dos turistas sedentos por fotos, muitos de seus segredos estão de certa forma compartilhados pelos arqueólogos que têm o maravilhoso trabalho de tentar desvendá-la. Mas que ainda assim, certamente, não têm todas as respostas. Em meio a um entorno tão pouco transcendente em que a civilização atual, ao contrário, esvazia o sentido dos signos da natureza e os reinventa sob o molde único da mercadoria, aquela anterior capacidade do homem de divinizar-se mediante o mistério de suas próprias ações me pareceu fascinante.

Nopal e a Pirámide del Sol
Voltei para a Cidade do México com a vertigem da queda dos deuses. Curiosamente, a minha própria vertigem não me atacou enquanto subia as pirâmides em Teotihuacan, ainda que muitos me tinham dito que provavelmente não conseguiria alcançar o topo das pirâmides por causa dessa fobia. Mas, no mesmo dia pela noite, ao subir em um prédio para visitar uma amiga no décimo primeiro andar, novamente senti a náusea e o contido pânico que me acometem na altura. As nossas cidades de cimento, que nos rebaixam às condições humanas esvaziadas de qualquer divindade, nos enchem, por sua vez, de medo. Medo não do mistério, do desconhecido, mas medo justamente do que se vê, das alturas artificiais que se erguem cada vez mais para, ao invés de buscar o deus no céu, como as pirâmides indígenas, contrapor-se com o que há lá embaixo, à terra de que tentamos nos afastar e que reflete nosso fim, nossa queda. Todas as nossas avenidas de cimento são as modernas calçadas de mortos. Mortos decaídos, em todos os sentidos dessa última palavra.

E contava sobre minha viagem para minha família através do Skype e ouvia a tempestade que se aproximada de Santos, litoral de São Paulo. Um raio chegou a me assustar, a sete mil quilômetros de distância de onde deve ter caído. Mas o som que fez minha mãe afastar a cadeira de frente do monitor bruscamente foi tão penetrante através dos bits da internet quanto lá na cidade em que vivem meus pais. Achamos melhor parar a conversa para que pudessem desligar os equipamentos eletrônicos da casa. Alguns minutos depois, porém, o céu do DF se escureceu e os trovões tomaram conta do domingo da capital mexicana. A chuva foi o deus deste domingo, encharcando nosso continente latino-americano de norte a sul, languidescendo meus pensamentos, me acompanhando por um passeio pelas ruas coloniais e agora úmidas de Coyoacán.

segunda-feira, 17 de março de 2014

A fotografia proibida

Nessa semana, um palhaço entrou no trolebús com seu ajudante mirim, provavelmente seu filho. O menino pintado respondia ao jogo de perguntas do palhaço maior com respostas decoradas, sem nenhum sentimento, tornando as piadas meras palavras atiradas ao ar a troca de alguns centavos. Enquanto repetia mecanicamente as piadas, olhava, através da porta transparente do trolebús, passarem as árvores da calçada da Miguel Ángel Quevedo iluminadas pelo sol forte, como borrões de verde e dourado. Acontece que o trolebús é um palco triste.

Mas o que se seguiu aos palhaços tristes foi uma tarde agradável em uma praça arborizada de Coyoacán com tango e samba, vinho e cerveja. Nós, os turistas, sempre alheios à mexicanidad (e burlando a lei que proíbe o consumo de bebida alcoólica em vias públicas).

E no dia que se seguiu, o bosque de Chapultepec, onde está o Castillo em que viveram Maximiliano e Carlota e os dois lagos artificiais de Porfirio Díaz, se abriu sob o sol de todos os dias dos turistas. Percorremos as passarelas do bosque tomadas de gente, bordeadas de ambos lados por camelôs com toda espécie de quinquilharia. Me detive em um deles, de onde pendiam títeres vestidos de mariachis. Os títeres me fascinam, são bonecos assustadores, denunciam e ocultam ao mesmo tempo a sua artificialidade, demonstram o grande segredo do mundo, que é o de mostrar a liberdade, mas, ao mesmo tempo, tê-la amarrada a fios quase invisíveis (como em uma das cenas mais lindas do cinema, em Fanny e Alexander, de Ingmar Bergman, quando Deus aparece para o menino Alexander como um títere). Resolvi tirar uma foto dos bonecos, atitude que ilude o desconforto do turista frente a algo completamente efêmero. Quando posicionava meu celular para a foto, porém, a vendedora se pôs entre a câmera e os bonecos e disse que não podia tirar fotos, argumentando que seus objetos eram para vender e não para que eu ganhasse dinheiro com o seu trabalho sem lhe pagar nada. Como sempre acontece comigo em situações como essa, não lhe disse nada. Apenas abaixei o celular e repeti para a minha amiga: "dijo que no se puede sacar fotos". Mariela, porém, apontou para os posteres emoldurados apoiados no chão ao redor do camelô, que exibiam fotos de Justin Bieber, Iron Maiden e afins, e argumentou que ali também se via um trabalho vendido sem que houvesse o pagamento aos fotógrafos proprietários daquelas imagens. A senhora se desconcertou por alguns segundos, mostrou a moldura de papelão, o revestimento de cola brilhante nas fotos impressas e disse que cobrava por este trabalho que fazia, não pela foto em si. Retomamos nosso passeio, percorremos os belos museus de Arte Moderno e Rufino Tamayo, mas o debate com a mulher não nos abandonou.

Seguramente devido a nossos trabalhos, ambos envolvidos com a fotografia, tivemos que debater mais, pensar mais, escrever (cada uma em seu blog) sobre o assunto. A questão do direito da imagem torna a situação por si só contraditória. Não nos pareceu que a senhora esperasse que encontraríamos um argumento para refutar o que nos dizia tão enfática. Afinal, era óbvio que os títeres eram seus, e que se tirávamos uma foto e a vendíamos, ela ficava sem o lucro. E aquelas imagens emolduradas logo abaixo dos bonecos pendurados eram acessíveis a qualquer um, bastando uns cliques na Internet. Nessa situação se reproduziu novamente a discussão tão cara à fotografia desde seu surgimento. No primeiro momento, a foto não é apenas de quem a tira, mas também de quem tem seu retrato tomado (afinal, fotografias são "tomadas" às coisas). E, no segundo momento, o discurso é completamente o oposto; a reprodução acelerada das fotos faz com que a ideia de não pertencimento aos autores e aos atores que as compõem se prolifere.

Disso, para não repetir a discussão circular, ficou para mim alguns argumentos que poderia ter usado no momento (isso sempre me acontece, o argumento em delay). A fotografia que eu tirava em momento algum se tornaria dinheiro, uma ilusão da senhora do camelô movida, num domingo ensolarado, pela lógica da mercadoria automaticamente transformada em capital (a foto do títere talvez estivesse agora reproduzida aqui, neste blog, acessado por quase ninguém, perdida no mundo contraditório da acessibilidade e do esquecimento que é a Internet, onde se perdem também fotos de "justin-biebers" e "iron-maidens"). Pensei então que poderia ter argumentado, "senhora, na verdade, é à luz que devemos pagar pelo fato de eu tirar uma fotografia, ao sol tão persistente do México e adorado por seus ancestrais, e não à sua mercadoria". Ou poderia ainda dizer: "senhora, como seu títere demonstra, isso tudo é uma mera ilusão". Mas o dinheiro compra ilusões, elas também valem caro, ela poderia responder. E a luz está aí todos os dias, seus ancestrais, mortos; e eu transformo a luz em mercadoria, como ela faz com a moldura das imagens de famosos.

Agora, nos vejo todos como os títeres trazidos pelos espanhóis na colonização. Turistas sul-americanos, vendedora mexicana, palhaços de transporte público, reféns da encenação de uma situação sem saída produto do capital. Maximiliano e Carlota, que transformaram o "vale dos gafanhotos" em um Chapultepec cuja palavra nahuatl está esvaziada de significado, espalharam já na colônia esses fios sintéticos de náilon que nos amarram a todos à lógica mercantil, fazendo-nos esquecer da luz, da magia da imagem e da graça do palhaço.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Dia da mulher, 12 anos escravo e o senhor do trolebús

1. Passei o dia 8 de março na Cidade do México.

"Femnicidios alcanzan nivel de crisis en México", anuncia uma reportagem on-line do final do ano passado que me chegou apenas hoje. Passei o Dia Internacional da Mulher justamente no país com o maior número de feminicídios da América Latina. Uma vez perguntei a um conhecido, antes de vir para cá, como tinha sido sua estadia no país. Seus olhos radiaram quando descrevia as experiências que havia vivido. Perguntei se achava que seria o mesmo comigo, mulher. Abaixou a cabeça e disse: "mulher é complicado".

Ser mulher na Cidade do México é nunca ter que abrir a porta do carro, sempre há um homem para abri-la, é, na maioria das vezes, descer dos ônibus com a ajuda de um homem que se posiciona na saída com a mão estendida, é sempre entrar primeiro, quando acompanhada de homens, é ter alguns vagões especiais nas linhas de metrô e não precisar enfrentar os vagões mais lotados pela maioria masculina. Muitas e muitos, ao ler essas linhas, deverão pensar o velho "tá reclamando do quê?". Explico. Ser mulher na Cidade do México é também ser olhada por todos os homens, quando desacompanhada de outros homens, dentro de um vagão de metrô, na rua, num restaurante (raramente falam alguma coisa, mas os olhares são intimidantes), é ter que aceitar que um amigo te acompanhe até a porta do metrô para saltar quando não está no vagão preferencial, é ler os vários cartazes com o número para denunciar os recorrentes assédios ocorridos nos transportes públicos, e anotar o número no celular, é escutar de um homem num bar sábado a noite que é impossível que tenha saído com as amigas apenas para beber e conversar (como ele estava fazendo com os seus amigos homens). Ser mulher no México é ter medo de andar sozinha, de pegar táxi sozinha, de entrar em vagão de metrô vazio. Muito disto também acontece no Brasil. Portanto, melhor seria dizer: ser mulher, em nossos países latino-americanos predominantemente machistas é tudo isso também.

Mas eu sigo caminhando, enfrentando e lutando pela minha liberdade, do meu jeito, onde quer que seja.

2. Vi o "12 anos escravo" na Cineteca Nacional.

Não sou muito de ver filmes que ganham Oscar, mas este, como a muitas pessoas, me despertou curiosidade antes mesmo de levar o prêmio. Qualquer filme que levante, de uma forma ou de outra, a bandeira em defesa dos negros é do meu agrado de antemão. Ganhou o Oscar quando eu viajava por Tepoztlán. Uma semana depois, consegui convencer um dos meus rommates a me acompanhar na majestosa Cineteca Nacional. Que merece um parêntesis.

(A Cineteca tem dez salas de exibição, além de um telão para exibição ao ar livre; estão em cartaz, geralmente, os ditos filmes alternativos, europeus, latino-americanos, asiáticos e estadunidenses que, de alguma forma, dialogam com a lógica artística e não meramente de entretenimento; é financiada pelo Consejo Nacional para la Cultura y las Artes e a entrada INTEIRA custa pouco menos de dez reais).

Para mim é um filme bonito e mereceu o prêmio, apesar de não ter me surpreendido. Mas me comoveu. Em diversos momentos me contive para que as lágrimas que umedeciam meu rosto não caíssem. E a plateia, que lotava a maior sala da Cineteca, por sua vez, riu. Isso aconteceu em várias cenas, inclusive na cena que achei a mais forte do filme. O protagonista Solomorn Northup (Chiwetel Ejiofor) toca violino e os demais escravos dançam na sala de jantar dos seus senhores, sob ordem desses, quando a esposa do senhor atira uma garrafa no rosto da escrava interpretada pela também ganhadora do Oscar, Lupita Nyong'o. Após interromperem a dança pela violência da mulher branca, o senhor pede para que continuem. Os negros voltam aos seus passos desajeitados, meio contrariados, enquanto o corpo desfalecido da escrava é arrastado a um canto. A sala se encheu de risadas nessa cena. Na cena final do filme, quando Northup reencontra sua família e pergunta à filha quem é o homem ao seu lado, ao que esta responde que é o seu marido, novamente as gargalhadas ganharam a sala. Ao subirem os letreiros as pessoas ligavam os celulares, conversavam sobre trivialidades, levantavam como se tivessem acabado de ver um filme da Pixar. Discutindo com o meu colega, concluímos, ou melhor, justificamos a insensibilidade geral nessa sessão de 12 anos escravo pelo fato de que a escravidão negra não é algo próximo ao mexicano comum. Ainda assim, fiquei surpreendida (talvez mesmo no Brasil não houvesse comoção, não sei, talvez isso não seja importante, não sei).

3. O senhor do trolebús.

Moro num bairro relativamente longe da UNAM. São em torno de 20 minutos sem trânsito para chegar à faculdade. Mas essa expressão "sem trânsito" só é tornada verdadeira após às 23 h. Ou seja, sempre que vou à universidade enfrento aproximadamente 50 minutos dentro do velho trolebús. Velho não é um termo carinhoso, é uma verdade. O trolebús só não é mais velho do que as "peseras", pequenas vans que circulam pela cidade e que às vezes é difícil acreditar na capacidade de ainda se movimentarem vistas suas condições. O trolebús é um ônibus elétrico, lento, com poucos assentos e normalmente lotado (o sistema de metrô é muito mais acessível que o de São Paulo, mas para ir à UNAM teria que fazer duas baldeações, a la linha amarela para linha azul de São Paulo, o que no final se converte no tempo do percurso do ônibus elétrico).

Hoje, quando ia à aula da manhã notei que um senhor, de aproximadamente cinquenta anos, com cor amarronzada indígena, bigode a la mexicana, e cabelos meio grisalhos, sentava em um dos bancos na fileira paralela à minha. Notei-o talvez por causa da gravata colorida, sem nó, que pendia do pescoço por cima da blusa de tactel azul e cinza encardida. Segurava um copo de isopor do El Jarocho, uma cafeteria que compete com os inúmeros Starbucks espalhados pela cidade. Na outra mão trazia uma pena, como essas que se usava para escrever. Enquanto as pessoas entravam e saíam, se acotovelavam, pisavam nos pés uns dos outros, e nos meus também, o senhor molhava a pena no café e desenhava nas laterais do copo. Acho que o líquido preto não era o suficiente para imprimir qualquer traço ao copo de isopor, mas o senhor se deteve no serviço por bastante tempo, até o ônibus esvaziar. Quando já éramos poucos passageiros, deixou o copo de lado, deu um nó perfeito na gravata e ergueu a mão com a pena. Soltou-a no ar. A pena rodopiou várias vezes antes de cair lentamente no chão do ônibus. O senhor repetiu esse movimento inúmeras vezes. Eu o observava com total atenção. E tive vontade de chorar.

quarta-feira, 5 de março de 2014

A palavra nahuatl em chamas

Mais de um mês longe de casa.

O Carnaval chegou no Brasil e aqui eu começo a sentir saudade. Da movimentação dessa data, do calor, do feriado (especialmente do feriado, já que o trabalho por aqui só aumenta) e da comida. A comida mexicana é saborosa, tem tudo, para todos os gostos, um pouco como a brasileira, mas a saudade do simples arroz e feijão, da "mistura" bem temperada, da batata frita... Aqui tem tudo isso, mas sempre com sabor diferente. O Centro Cultural Brasil-México, financiado pela embaixada brasileira no México, anunciou um Carnaval brasileiro. Na verdade, o que mais me chamou a atenção nesse anúncio foi: "comidas típicas". Já estava preparada para ir lá no sábado, segundo dia em que as escolas de samba desfilavam em São Paulo, quando surgiu a possibilidade de uma viagem à Tepoztlán, cidade a 50 quilômetros da capital, já no estado de Morelos, com meus novos amigos argentinos. O fato de a viagem ser barata contou muito, pois, um mês após minha chegada, ainda não recebi a bolsa de estudos que me foi outorgada.

Tepoztlán me lembrou as cidades coloniais brasileiras. Chão de pedra, casas baixas, varandas cercadas por grades de ferro. E, rodeando a cidade, uma montanha que lhe dá um ar de clima temperado, ainda que faça mais calor do que na capital, diferenciando-se sobremaneira das nossas cidades históricas, em sua maioria, envoltas em mata tropical. No topo da montanha, a pirâmide de Tepozteco, antigo templo dos aztecas que habitaram a região até a chegada dos espanhóis. Hernán Cortés instalou-se em Cuernavaca, cidade muito próxima à Tepoztlán, devido ao fato de a região ser estratégica pela fertilidade de suas terras e seu fácil acesso. Essa importância conferida pelos espanhóis já antecipa muito do que se segue.

A cidade, de aproximadamente 25 mil habitantes, está bastante povoada por estrangeiros. Foi caminhando em suas ruas que encontramos uma placa tímida em frente a uma portinha que dizia "Xangaroó, restaurante brasileiro". Quase sem esperar meus amigos, entrei, segui por um corredor cujas portas laterais davam para lojas de artesanato e, no final desse corredor, se abriu um pequeno jardim, com mesas e cadeiras de madeira. Novamente um cartaz anunciando a comida de casa. Passando pelo jardim, entrei na casinha de madeira, uma pequena cozinha e uma sala com berimbau, bongô e um cajón peruano. Sentada a um canto estava Rosana, acreana que se instalou no México em 1988 e que, junto com um sócio italiano, toca o restaurante em Tepoztlán.

Restaurante da acreana Rosana em Tepoztlán.

Foi nesse restaurante que soubemos dos movimentos realizados pelos moradores da cidade contra o desmatamento da região, em especial, da montanha que abriga o antigo templo indígena. Ouvimos ecoar também um certo desdém em relação aos turistas - sempre "eles", nunca se referiam a nós, brasileira e argentinos que, afinal, também éramos turistas. O Carnaval da cidade foi pintado com cores de desprezo, devido à atração de uma multidão que não se importava de verdade com o que ocorria por ali. E pouco depois de dizer isso, uma amiga de Rosana, uruguaia, quem a ajudou a nos preparar escondidinho de carne e caipirinha, apontou assustada o topo da montanha que despontava por cima do telhado. O fogo a tomava. As sul-americanas reforçaram o fato de que as autoridades tardavam sempre em atuar, mais preocupadas com a organização do Carnaval, e a montanha queimava, enquanto eles, os turistas, lotavam as ruas do pueblo.

Após comer, nós também fomos em busca deste Carnaval. Esquecemos da montanha que ardia. E não encontramos a multidão temida pelas estrangeiras, não turistas, no restaurante brasileiro. Encontramos crianças fantasiadas, pessoas comendo tacos e um pequeno parque de diversões armado para a festa, contrastando sua montanha russa com a montanha de verdade às suas costas.

Na manhã desse mesmo dia, nós visitamos a montanha de verdade, 400 metros de subida pedregosa e íngreme, para chegar ao templo de Tepozteco. Um argentino, sócio de um outro bar da região, nos havia alertado que subiríamos mais de uma hora para nos deparar com uma pirâmide muito pequena. Foi justamente a modéstia desse templo o que mais me chamou atenção nessa viagem.

Tepoztlán vista da montanha Tlahuiltepec.
A pirâmide feita ao semi-deus Tepoztécatl era realmente pequena em comparação com as ainda desconhecidas pirâmides de Teotihuacan, por exemplo. Apesar disso, devido a este semi-deus representar entre outras coisas, a fertilidade, muitos sobem até lá com objetivos místicos. O funcionário do parque arqueológico instalado no local nos advertiu que ali em cima aparecia de tudo, desde casais preparados para fazer sexo, até pessoas amanhecidas em algum bar da região que decidiam acabar a festa no templo azteca.

A tradição por detrás daquelas pedras teria desaparecido, realmente. E, tal fato tivera um início pontual, em um 7 de setembro, nos anos 30 do século XVI, quando Cortés rendeu o maior sacerdote do templo e o obrigou, juntamente com todos os habitantes da região, que fosse batizado. O estrangeiro ressignificou a tradição. Aquele funcionário ainda nos disse que em Tepoztlán se comemora o 7 de setembro, que seria um dia festivo, como aquele Carnaval que nos esperava lá embaixo (as coincidências da data da rendição dos indígenas e da festa do Carnaval que ocorria naquele momento se suspenderam e sua relação nebulosa se impregnou em mim).

O funcionário ainda nos contou sobre Cuernavaca, onde está o palácio em que se instalou Cortés, além de outros detalhes sobre a dinâmica da colonização, os antigos rituais indígenas, até a atual presença dos narcos em Cuernavaca. Era realmente simpático e com vontade de contar tudo o que sabia. Perguntamos seu nome. Era um nome nahuatl que significava homem que veio à terra para fazer amigos. Trago apenas a tradução, pois a palavra nahuatl ficou esquecida no topo da montanha de Tlahuiltepec, junto com seu pequeno templo.

De volta à capital, ainda soubemos da morte de dois bombeiros que tentaram conter o incêndio na montanha. Talvez ela se vingue, de alguma forma, de tanto esquecimento e exploração.