quinta-feira, 14 de agosto de 2014

E então, o que aconteceu?

Chegou o fim da viagem. Fui tomada por uma letargia irrefreável. Não conseguia escrever nada, não sabia como organizar a ideia de que estava voltando. Não sabia se tinha que olhar tudo ao redor com mais detenção, cada parte, cada detalhe, por um, dois, três minutos. Não sabia se tinha que escutar com mais cuidado, se tinha que comer com maior pausa. Tudo porque não sabia como agir na despedida. Não sabia de que tipo de despedida se tratava. Estava só. Queria ficar só e andar pelo centro da Cidade do México. Tirar foto das ruínas do Templo Maior, ouvir os homens do realejo, um em cada esquina, ouvir a gravação da compradora de eletrodomésticos velhos que entoa por todas as ruas da cidade, eu queria colocar a cidade dentro de mim. Não sabia me despedir. Ainda não sei.

Não falei de Taxco, para onde viajei pouco antes de ser dominada por esse sentimento de partida que se aproximava. A cidade está localizada entre montanhas, parece que está pendendo de uma delas, na verdade. Em meio às curvas fechadas feitas pelo carro que me levava até a antiga cidade mineira, e em meio a uma náusea que me cobrava esforço para manter o estômago dentro de mim, via as casas brancas se assomando na montanha muito íngreme mais adiante. A cidade realmente parecia estar à beira de um abismo. Eu quase vomitei.

Andando pelas ruas de pedras, onde se amontoavam lojas e lojas de acessórios de prata, algumas de artesanato, tudo à venda, estava a igreja de Santa Prisca, fotografada por Juan Rulfo. Quis encontrar o ponto de onde ele a fotografou. Choveu e foi difícil subir as ladeiras de pedras molhadas sem escorregar, na busca da visão daquele que me levou até ali.

Igreja de Santa Prisca à noite, pelo amigo e companheiro de viagem German Carrasco.

Após muitas subidas, às vezes tínhamos que nos apoiar nas janelas das casas que margeavam as ruas para seguir caminho, chegamos a um pátio que tinha, a um canto, uma pequena igreja. Nos voltamos à direção da igreja de Santa Prisca desde este pátio. A vista era quase a mesma da foto, mas pareceia que Rulfo se encontrava ainda mais acima de nós quando fotografou. Parecia que havia subido na torre daquela pequena igreja e de lá pôde ver a igreja principal com maior destaque. Na foto, o pátio da igreja pequena também é visto, e é por onde caminha uma mulher com um cesto na cabeça. Pensei que poderia remontar mentalmente toda a cena que vira Rulfo se alcançasse exatamente o mesmo ponto em que estivera para aquela tomada.

Igreja de Santa Prisca (no alto), por Juan Rulfo.

Entramos na pequena igreja e pedimos ao padre, que estava passeando por entre os bancos vazios, para subir na torre. Explicamos que eu vira do Brasil para isso. O padre acedeu sem grandes interrogações. Subi por uma escada estreita de espiral, tentei não olhar para baixo pois tenho vertigem, o que não mencionei a nenhum dos que me acompanhavam. Ver desde o mesmo ponto de vista de Rulfo se sobressaía aos meus medos. Lá de cima, via-se o pátio se estender até a ladeira próxima e, mais abaixo, a igreja de Santa Prisca. Não era ali. Na foto de Rulfo a igreja de Santa Prisca ficava acima do pátio que fazia perpendicular com o local em que se encontrava o fotógrafo. O padre disse que possivelmente o fotógrafo havia mirado sua câmera, lá em meados dos anos 50, desde um outro bairro próximo, que hoje em dia era bastante perigoso para turistas. Frente à chuva e ao perigo da ultra-pós-modernidade, desisti de seguir a busca.


Na volta de Taxco me segurava com força na porta do carro, com medo de ser arremessada em alguma curva e cair nos abismos do mundo.



quinta-feira, 29 de maio de 2014

Guanajuato e os 40 dias de tremor

A quatro horas da capital mexicana, na minha primeira vez em direção ao norte, deparei-me com a cidade de Guanajuato, capital do estado de mesmo nome. Cercada por montanhas e repleta de casas coloniais me lembrou a Minas Gerais que nunca conheci. Em Guanajuato não há nenhum resquício da cultura pré-colombiana, por isso se parece tanto às cidades coloniais brasileiras. As montanhas estão cortadas por túneis de mineração, que hoje em dia são atração turística, mas que na colônia serviram para a exploração dos espanhóis. No topo de uma das montanhas está uma estátua cor salmão, de um homem baixo e gordo apontando o céu. Poucos tiram fotos ou se detêm para a observar a estátua. Trata-se de El Pípila, antigo minerador que teria atuado na insurgência para a expulsão dos espanhóis da cidade e na posterior independência do país, em 1821.O que chama mais atenção dos turistas é a linda vista da cidade, sua catedral, a bela Universidade de Guanajuato com suas escadas de pedra branca e as casas coloridas como miniaturas lá embaixo. Sabe-se que El Pípila provavelmente tenha falecido devido a doenças causadas pelo pó das minas. Não sei se sua história é contada pelos vários "guias turísticos" que se oferecem a contar a história da cidade por troca de alguma "propina". Soube dessa história assistindo a um programa turístico na televisão. El Pípila permanece esquecido no topo da montanha de Guanajuato, mas não se cansa de apontar o céu, sempre azul em todos os dias em que durou a viagem.

El Pípila, Guanajuato.

As ruas estreitas de pedra, as casas coloniais coloridas da descida à cidade lembravam o Pelourinho brasileiro. Lá embaixo, uma multidão tentava passear pelas ruas do centro, onde está a igreja com o ruidoso sino que entoava todos os dias a partir das seis da manhã para chamar os fiéis à missa. Nós, os turistas pecadores, nos remexíamos na cama tentando abafar as campanadas com o travesseiro. Porém, antes dessas campanadas, o sono nos abençoou sem sobressaltos, enquanto a capital mexicana, pela quarta vez este ano, tremia novamente. Soube do tremor ao acordar e checar as redes sociais. Agradeci a Guanajuato pela noite tranquila.

Guanajuato, vista do mirante El Pípila.


E falando em tremores, após os dois tremores que senti na capital, sentia estranhas tonturas e devido a qualquer movimento, fosse da cadeira onde me sentava, um pouco bamba, fosse do colchão macio da minha cama, meu coração acelerava e a cabeça andava às rodas. Soube, em artigos da Internet, que os tremores deixam uma sensação de tontura por até 40 dias após sua manifestação. Conto os dias para que a tontura passe, para que não tenha mais medo do chão, para que possa enfim aproveitar o meu colchão e ter uma noite tranquila, como aquela de Guanajuato. Aqui na capital, sem as campanadas da igreja para me despertar às seis da manhã, mas com o carro do comprador de ferros que entoa todas as manhãs a gravação de uma voz estridente de menina: "se compran tambores, refrigeradores, estufas lavadoras, microondas o algo de fierro viejo que vendaaaaaa".

domingo, 20 de abril de 2014

Segredos de terremoto e tempestade

Passei doze dias longe do México. Voltei em meio à semana santa e encontrei um DF mais tranquilo. Tentei combinar uma viagem rápida à praia, mas cheguei tão cansada que preferi dividir com a capital mexicana uma semana preguiçosa. Caminhei pela Avenida Reforma, tirei minha primeira foto do anjo da Independência, que sempre me lembra o anjo germânico, da Vitória, em Berlim (não porque estive em Berlim, mas por causa dos filmes Asas do Desejo e Tão perto, tão longe do Wim Wenders que em suas maravilhosas panorâmicas mostram a estátua). Tentei chegar ao norte da cidade, mas parece que esse norte nunca chega. Cuitlahuac, onde estive grande parte desses dias, fica ao "centro-norte", como me disse Inti. São quarenta minutos de metrô do sul até esse centro-norte. E não encontro o norte nessa cidade. Cuitlahuac quer dizer "extremamente seco" em nahuatl, mas essa semana me deparei com minhas primeiras tempestades defeñas. Não podia ser de outra forma, uma vez que somente uma enxurrada poderia resultar da volta de uma cidade pós-moderna onde estive nos dias anteriores e onde se despertaram inúmeras dúvidas sobre o meu futuro (o que é isso, me pergunto). Haviam dito que só choveria em junho, mas as tardes da semana santa se revesaram entre um calor que lembra vagamente o Brasil e tempestades no fim da tarde, que esfriam a noite. De qualquer modo, estava tudo bem para quem queria descansar de uma cabeça que andou às voltas no mundo.

Seria assim, não fosse por um pequeno detalhe ocorrido na manhã da sexta-feira santa. Havia acordado e conversava com uma amiga pela Internet quando sinto uma náusea. No dia anterior tive pressão baixa, logo pensei que não estava bem, talvez por causa da minha viagem ao exterior que foi bastante intensa, talvez por um acontecimento na minha volta que também intensificou minha experiência mexicana. Porém, quando olhei para as paredes do quarto notei que elas ondulavam, os quadros querendo saltar conforme o balanço. Escrevi "terremoto, mo" e me levantei. O chão parecia de gelatina, as coisas batiam ao meu redor, meu coração saltava. Pensei em abrir a porta e sair, mas fiquei paralisada. Enviei uma mensagem a um dos moradores da casa, que estavam viajando (justo nessa manhã, estava sozinha). "Tranquila", me respondeu. E logo o tremor passou. Não dentro de mim, minhas mãos tremeram por ainda uns minutos. Depois soube que foi um tremor de 7.2 graus na escala Richter, com epicentro mais ao sul do país, no estado de Guerrero. Não houve danos nem feridos no DF.

Na Cidade do México, o descanso é um tremor, a experiência de viver aqui é esse terremoto que me deixa sem chão, ao mesmo tempo em que é a chuva que me refresca as tardes quentes.

domingo, 30 de março de 2014

Sol e chuva

Em menos de 40 minutos da capital mexicana, onde casas, prédios, asfalto, carros, ônibus, metrô, pessoas apressadas se amontoam, tentam passar, esborrifam fumaça e poluição, no conhecido cubismo da Guernica moderna que pinta a guerra de cidade grande, chega-se ao sítio arqueológico de Teotihuacan, a antiga cidade de pedra. Várias populações se alternaram na cidade encontrada pelos aztecas já abandonada por povos anteriores onde se encontram as pirâmides do Sol e da Lua. As indicações nas placas que guiam o passeio pela Calzada de los muertos até cada uma das pirâmides pouco diz sobre essas populações. Afirmam apenas que cerca de 85 mil pessoas viveram ali, no auge da cidade, cultuando Queztalcoatl, o deus em forma de serpente emplumada que mostra sua cara escupida nas pedras que circundam as pirâmides. O nome da avenida que corta a cidade de norte a sul tampouco é esclarecido, comentado-se apenas que os aztecas a teriam denominado assim por pensarem que as pequenas pirâmides que a margeiam eram tumbas. Outras pirâmides estão subterradas sob as ruínas da cidade que vemos erguidas ainda hoje. Ali os espanhóis não interviram de forma a desmoroná-la como fizeram com o Templo Mayor, subterrado no poluído centro da Cidade do México. O que fizeram foi tirar algumas pedras das pirâmides para com elas erguerem seus templos católicos em outros lugares.

Ruínas de Teotihuacan (à esquerda e ao fundo, a Pirámide del Sol e ao fundo e ao centro, a Calzada de los muertos).

A ansiedade em conhecer a cidade e a memória do esforço que foi subir o cerro de Tepozteco fez com que a subida ao topo da pirâmide do Sol ocorresse com relativa facilidade. De lá de cima o sol impiedoso seguia nos queimando, as pedras da cidade não eram capazes de desenhar uma sombra ao redor das pirâmides, e a Calzada de los muertos reluzia dourada. Diante daquele sol chapado, vigorante, é fácil compreender porque foi visto como um poderoso deus e teve a maior e mais trabalhosa pirâmide de Teotihuacan oferecida a ele. Aqueles povos adoravam exatamente aquilo que estava ao seu redor, identificavam sua atuação direta nas suas vidas, a toponímia de suas cidades e templos reflete a correspondência direta entre os elementos da natureza, divinizados, e a realidade terrena. Teotihuacan é justamente o lugar onde até mesmo os homens se convertem em deuses, segundo sua tradução do náhuatl.

E um dos motivos para essa divinização talvez se dê também por todo o mistério que encobre a história da cidade. Quem eram os homens que povoaram a cidade antes dos aztecas? Como foi realizada a construção daquelas pirâmides imensas, feitas de pedras que pesam toneladas? Grande parte de Teotihuacan está proibida para a visita dos turistas sedentos por fotos, muitos de seus segredos estão de certa forma compartilhados pelos arqueólogos que têm o maravilhoso trabalho de tentar desvendá-la. Mas que ainda assim, certamente, não têm todas as respostas. Em meio a um entorno tão pouco transcendente em que a civilização atual, ao contrário, esvazia o sentido dos signos da natureza e os reinventa sob o molde único da mercadoria, aquela anterior capacidade do homem de divinizar-se mediante o mistério de suas próprias ações me pareceu fascinante.

Nopal e a Pirámide del Sol
Voltei para a Cidade do México com a vertigem da queda dos deuses. Curiosamente, a minha própria vertigem não me atacou enquanto subia as pirâmides em Teotihuacan, ainda que muitos me tinham dito que provavelmente não conseguiria alcançar o topo das pirâmides por causa dessa fobia. Mas, no mesmo dia pela noite, ao subir em um prédio para visitar uma amiga no décimo primeiro andar, novamente senti a náusea e o contido pânico que me acometem na altura. As nossas cidades de cimento, que nos rebaixam às condições humanas esvaziadas de qualquer divindade, nos enchem, por sua vez, de medo. Medo não do mistério, do desconhecido, mas medo justamente do que se vê, das alturas artificiais que se erguem cada vez mais para, ao invés de buscar o deus no céu, como as pirâmides indígenas, contrapor-se com o que há lá embaixo, à terra de que tentamos nos afastar e que reflete nosso fim, nossa queda. Todas as nossas avenidas de cimento são as modernas calçadas de mortos. Mortos decaídos, em todos os sentidos dessa última palavra.

E contava sobre minha viagem para minha família através do Skype e ouvia a tempestade que se aproximada de Santos, litoral de São Paulo. Um raio chegou a me assustar, a sete mil quilômetros de distância de onde deve ter caído. Mas o som que fez minha mãe afastar a cadeira de frente do monitor bruscamente foi tão penetrante através dos bits da internet quanto lá na cidade em que vivem meus pais. Achamos melhor parar a conversa para que pudessem desligar os equipamentos eletrônicos da casa. Alguns minutos depois, porém, o céu do DF se escureceu e os trovões tomaram conta do domingo da capital mexicana. A chuva foi o deus deste domingo, encharcando nosso continente latino-americano de norte a sul, languidescendo meus pensamentos, me acompanhando por um passeio pelas ruas coloniais e agora úmidas de Coyoacán.

segunda-feira, 17 de março de 2014

A fotografia proibida

Nessa semana, um palhaço entrou no trolebús com seu ajudante mirim, provavelmente seu filho. O menino pintado respondia ao jogo de perguntas do palhaço maior com respostas decoradas, sem nenhum sentimento, tornando as piadas meras palavras atiradas ao ar a troca de alguns centavos. Enquanto repetia mecanicamente as piadas, olhava, através da porta transparente do trolebús, passarem as árvores da calçada da Miguel Ángel Quevedo iluminadas pelo sol forte, como borrões de verde e dourado. Acontece que o trolebús é um palco triste.

Mas o que se seguiu aos palhaços tristes foi uma tarde agradável em uma praça arborizada de Coyoacán com tango e samba, vinho e cerveja. Nós, os turistas, sempre alheios à mexicanidad (e burlando a lei que proíbe o consumo de bebida alcoólica em vias públicas).

E no dia que se seguiu, o bosque de Chapultepec, onde está o Castillo em que viveram Maximiliano e Carlota e os dois lagos artificiais de Porfirio Díaz, se abriu sob o sol de todos os dias dos turistas. Percorremos as passarelas do bosque tomadas de gente, bordeadas de ambos lados por camelôs com toda espécie de quinquilharia. Me detive em um deles, de onde pendiam títeres vestidos de mariachis. Os títeres me fascinam, são bonecos assustadores, denunciam e ocultam ao mesmo tempo a sua artificialidade, demonstram o grande segredo do mundo, que é o de mostrar a liberdade, mas, ao mesmo tempo, tê-la amarrada a fios quase invisíveis (como em uma das cenas mais lindas do cinema, em Fanny e Alexander, de Ingmar Bergman, quando Deus aparece para o menino Alexander como um títere). Resolvi tirar uma foto dos bonecos, atitude que ilude o desconforto do turista frente a algo completamente efêmero. Quando posicionava meu celular para a foto, porém, a vendedora se pôs entre a câmera e os bonecos e disse que não podia tirar fotos, argumentando que seus objetos eram para vender e não para que eu ganhasse dinheiro com o seu trabalho sem lhe pagar nada. Como sempre acontece comigo em situações como essa, não lhe disse nada. Apenas abaixei o celular e repeti para a minha amiga: "dijo que no se puede sacar fotos". Mariela, porém, apontou para os posteres emoldurados apoiados no chão ao redor do camelô, que exibiam fotos de Justin Bieber, Iron Maiden e afins, e argumentou que ali também se via um trabalho vendido sem que houvesse o pagamento aos fotógrafos proprietários daquelas imagens. A senhora se desconcertou por alguns segundos, mostrou a moldura de papelão, o revestimento de cola brilhante nas fotos impressas e disse que cobrava por este trabalho que fazia, não pela foto em si. Retomamos nosso passeio, percorremos os belos museus de Arte Moderno e Rufino Tamayo, mas o debate com a mulher não nos abandonou.

Seguramente devido a nossos trabalhos, ambos envolvidos com a fotografia, tivemos que debater mais, pensar mais, escrever (cada uma em seu blog) sobre o assunto. A questão do direito da imagem torna a situação por si só contraditória. Não nos pareceu que a senhora esperasse que encontraríamos um argumento para refutar o que nos dizia tão enfática. Afinal, era óbvio que os títeres eram seus, e que se tirávamos uma foto e a vendíamos, ela ficava sem o lucro. E aquelas imagens emolduradas logo abaixo dos bonecos pendurados eram acessíveis a qualquer um, bastando uns cliques na Internet. Nessa situação se reproduziu novamente a discussão tão cara à fotografia desde seu surgimento. No primeiro momento, a foto não é apenas de quem a tira, mas também de quem tem seu retrato tomado (afinal, fotografias são "tomadas" às coisas). E, no segundo momento, o discurso é completamente o oposto; a reprodução acelerada das fotos faz com que a ideia de não pertencimento aos autores e aos atores que as compõem se prolifere.

Disso, para não repetir a discussão circular, ficou para mim alguns argumentos que poderia ter usado no momento (isso sempre me acontece, o argumento em delay). A fotografia que eu tirava em momento algum se tornaria dinheiro, uma ilusão da senhora do camelô movida, num domingo ensolarado, pela lógica da mercadoria automaticamente transformada em capital (a foto do títere talvez estivesse agora reproduzida aqui, neste blog, acessado por quase ninguém, perdida no mundo contraditório da acessibilidade e do esquecimento que é a Internet, onde se perdem também fotos de "justin-biebers" e "iron-maidens"). Pensei então que poderia ter argumentado, "senhora, na verdade, é à luz que devemos pagar pelo fato de eu tirar uma fotografia, ao sol tão persistente do México e adorado por seus ancestrais, e não à sua mercadoria". Ou poderia ainda dizer: "senhora, como seu títere demonstra, isso tudo é uma mera ilusão". Mas o dinheiro compra ilusões, elas também valem caro, ela poderia responder. E a luz está aí todos os dias, seus ancestrais, mortos; e eu transformo a luz em mercadoria, como ela faz com a moldura das imagens de famosos.

Agora, nos vejo todos como os títeres trazidos pelos espanhóis na colonização. Turistas sul-americanos, vendedora mexicana, palhaços de transporte público, reféns da encenação de uma situação sem saída produto do capital. Maximiliano e Carlota, que transformaram o "vale dos gafanhotos" em um Chapultepec cuja palavra nahuatl está esvaziada de significado, espalharam já na colônia esses fios sintéticos de náilon que nos amarram a todos à lógica mercantil, fazendo-nos esquecer da luz, da magia da imagem e da graça do palhaço.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Dia da mulher, 12 anos escravo e o senhor do trolebús

1. Passei o dia 8 de março na Cidade do México.

"Femnicidios alcanzan nivel de crisis en México", anuncia uma reportagem on-line do final do ano passado que me chegou apenas hoje. Passei o Dia Internacional da Mulher justamente no país com o maior número de feminicídios da América Latina. Uma vez perguntei a um conhecido, antes de vir para cá, como tinha sido sua estadia no país. Seus olhos radiaram quando descrevia as experiências que havia vivido. Perguntei se achava que seria o mesmo comigo, mulher. Abaixou a cabeça e disse: "mulher é complicado".

Ser mulher na Cidade do México é nunca ter que abrir a porta do carro, sempre há um homem para abri-la, é, na maioria das vezes, descer dos ônibus com a ajuda de um homem que se posiciona na saída com a mão estendida, é sempre entrar primeiro, quando acompanhada de homens, é ter alguns vagões especiais nas linhas de metrô e não precisar enfrentar os vagões mais lotados pela maioria masculina. Muitas e muitos, ao ler essas linhas, deverão pensar o velho "tá reclamando do quê?". Explico. Ser mulher na Cidade do México é também ser olhada por todos os homens, quando desacompanhada de outros homens, dentro de um vagão de metrô, na rua, num restaurante (raramente falam alguma coisa, mas os olhares são intimidantes), é ter que aceitar que um amigo te acompanhe até a porta do metrô para saltar quando não está no vagão preferencial, é ler os vários cartazes com o número para denunciar os recorrentes assédios ocorridos nos transportes públicos, e anotar o número no celular, é escutar de um homem num bar sábado a noite que é impossível que tenha saído com as amigas apenas para beber e conversar (como ele estava fazendo com os seus amigos homens). Ser mulher no México é ter medo de andar sozinha, de pegar táxi sozinha, de entrar em vagão de metrô vazio. Muito disto também acontece no Brasil. Portanto, melhor seria dizer: ser mulher, em nossos países latino-americanos predominantemente machistas é tudo isso também.

Mas eu sigo caminhando, enfrentando e lutando pela minha liberdade, do meu jeito, onde quer que seja.

2. Vi o "12 anos escravo" na Cineteca Nacional.

Não sou muito de ver filmes que ganham Oscar, mas este, como a muitas pessoas, me despertou curiosidade antes mesmo de levar o prêmio. Qualquer filme que levante, de uma forma ou de outra, a bandeira em defesa dos negros é do meu agrado de antemão. Ganhou o Oscar quando eu viajava por Tepoztlán. Uma semana depois, consegui convencer um dos meus rommates a me acompanhar na majestosa Cineteca Nacional. Que merece um parêntesis.

(A Cineteca tem dez salas de exibição, além de um telão para exibição ao ar livre; estão em cartaz, geralmente, os ditos filmes alternativos, europeus, latino-americanos, asiáticos e estadunidenses que, de alguma forma, dialogam com a lógica artística e não meramente de entretenimento; é financiada pelo Consejo Nacional para la Cultura y las Artes e a entrada INTEIRA custa pouco menos de dez reais).

Para mim é um filme bonito e mereceu o prêmio, apesar de não ter me surpreendido. Mas me comoveu. Em diversos momentos me contive para que as lágrimas que umedeciam meu rosto não caíssem. E a plateia, que lotava a maior sala da Cineteca, por sua vez, riu. Isso aconteceu em várias cenas, inclusive na cena que achei a mais forte do filme. O protagonista Solomorn Northup (Chiwetel Ejiofor) toca violino e os demais escravos dançam na sala de jantar dos seus senhores, sob ordem desses, quando a esposa do senhor atira uma garrafa no rosto da escrava interpretada pela também ganhadora do Oscar, Lupita Nyong'o. Após interromperem a dança pela violência da mulher branca, o senhor pede para que continuem. Os negros voltam aos seus passos desajeitados, meio contrariados, enquanto o corpo desfalecido da escrava é arrastado a um canto. A sala se encheu de risadas nessa cena. Na cena final do filme, quando Northup reencontra sua família e pergunta à filha quem é o homem ao seu lado, ao que esta responde que é o seu marido, novamente as gargalhadas ganharam a sala. Ao subirem os letreiros as pessoas ligavam os celulares, conversavam sobre trivialidades, levantavam como se tivessem acabado de ver um filme da Pixar. Discutindo com o meu colega, concluímos, ou melhor, justificamos a insensibilidade geral nessa sessão de 12 anos escravo pelo fato de que a escravidão negra não é algo próximo ao mexicano comum. Ainda assim, fiquei surpreendida (talvez mesmo no Brasil não houvesse comoção, não sei, talvez isso não seja importante, não sei).

3. O senhor do trolebús.

Moro num bairro relativamente longe da UNAM. São em torno de 20 minutos sem trânsito para chegar à faculdade. Mas essa expressão "sem trânsito" só é tornada verdadeira após às 23 h. Ou seja, sempre que vou à universidade enfrento aproximadamente 50 minutos dentro do velho trolebús. Velho não é um termo carinhoso, é uma verdade. O trolebús só não é mais velho do que as "peseras", pequenas vans que circulam pela cidade e que às vezes é difícil acreditar na capacidade de ainda se movimentarem vistas suas condições. O trolebús é um ônibus elétrico, lento, com poucos assentos e normalmente lotado (o sistema de metrô é muito mais acessível que o de São Paulo, mas para ir à UNAM teria que fazer duas baldeações, a la linha amarela para linha azul de São Paulo, o que no final se converte no tempo do percurso do ônibus elétrico).

Hoje, quando ia à aula da manhã notei que um senhor, de aproximadamente cinquenta anos, com cor amarronzada indígena, bigode a la mexicana, e cabelos meio grisalhos, sentava em um dos bancos na fileira paralela à minha. Notei-o talvez por causa da gravata colorida, sem nó, que pendia do pescoço por cima da blusa de tactel azul e cinza encardida. Segurava um copo de isopor do El Jarocho, uma cafeteria que compete com os inúmeros Starbucks espalhados pela cidade. Na outra mão trazia uma pena, como essas que se usava para escrever. Enquanto as pessoas entravam e saíam, se acotovelavam, pisavam nos pés uns dos outros, e nos meus também, o senhor molhava a pena no café e desenhava nas laterais do copo. Acho que o líquido preto não era o suficiente para imprimir qualquer traço ao copo de isopor, mas o senhor se deteve no serviço por bastante tempo, até o ônibus esvaziar. Quando já éramos poucos passageiros, deixou o copo de lado, deu um nó perfeito na gravata e ergueu a mão com a pena. Soltou-a no ar. A pena rodopiou várias vezes antes de cair lentamente no chão do ônibus. O senhor repetiu esse movimento inúmeras vezes. Eu o observava com total atenção. E tive vontade de chorar.

quarta-feira, 5 de março de 2014

A palavra nahuatl em chamas

Mais de um mês longe de casa.

O Carnaval chegou no Brasil e aqui eu começo a sentir saudade. Da movimentação dessa data, do calor, do feriado (especialmente do feriado, já que o trabalho por aqui só aumenta) e da comida. A comida mexicana é saborosa, tem tudo, para todos os gostos, um pouco como a brasileira, mas a saudade do simples arroz e feijão, da "mistura" bem temperada, da batata frita... Aqui tem tudo isso, mas sempre com sabor diferente. O Centro Cultural Brasil-México, financiado pela embaixada brasileira no México, anunciou um Carnaval brasileiro. Na verdade, o que mais me chamou a atenção nesse anúncio foi: "comidas típicas". Já estava preparada para ir lá no sábado, segundo dia em que as escolas de samba desfilavam em São Paulo, quando surgiu a possibilidade de uma viagem à Tepoztlán, cidade a 50 quilômetros da capital, já no estado de Morelos, com meus novos amigos argentinos. O fato de a viagem ser barata contou muito, pois, um mês após minha chegada, ainda não recebi a bolsa de estudos que me foi outorgada.

Tepoztlán me lembrou as cidades coloniais brasileiras. Chão de pedra, casas baixas, varandas cercadas por grades de ferro. E, rodeando a cidade, uma montanha que lhe dá um ar de clima temperado, ainda que faça mais calor do que na capital, diferenciando-se sobremaneira das nossas cidades históricas, em sua maioria, envoltas em mata tropical. No topo da montanha, a pirâmide de Tepozteco, antigo templo dos aztecas que habitaram a região até a chegada dos espanhóis. Hernán Cortés instalou-se em Cuernavaca, cidade muito próxima à Tepoztlán, devido ao fato de a região ser estratégica pela fertilidade de suas terras e seu fácil acesso. Essa importância conferida pelos espanhóis já antecipa muito do que se segue.

A cidade, de aproximadamente 25 mil habitantes, está bastante povoada por estrangeiros. Foi caminhando em suas ruas que encontramos uma placa tímida em frente a uma portinha que dizia "Xangaroó, restaurante brasileiro". Quase sem esperar meus amigos, entrei, segui por um corredor cujas portas laterais davam para lojas de artesanato e, no final desse corredor, se abriu um pequeno jardim, com mesas e cadeiras de madeira. Novamente um cartaz anunciando a comida de casa. Passando pelo jardim, entrei na casinha de madeira, uma pequena cozinha e uma sala com berimbau, bongô e um cajón peruano. Sentada a um canto estava Rosana, acreana que se instalou no México em 1988 e que, junto com um sócio italiano, toca o restaurante em Tepoztlán.

Restaurante da acreana Rosana em Tepoztlán.

Foi nesse restaurante que soubemos dos movimentos realizados pelos moradores da cidade contra o desmatamento da região, em especial, da montanha que abriga o antigo templo indígena. Ouvimos ecoar também um certo desdém em relação aos turistas - sempre "eles", nunca se referiam a nós, brasileira e argentinos que, afinal, também éramos turistas. O Carnaval da cidade foi pintado com cores de desprezo, devido à atração de uma multidão que não se importava de verdade com o que ocorria por ali. E pouco depois de dizer isso, uma amiga de Rosana, uruguaia, quem a ajudou a nos preparar escondidinho de carne e caipirinha, apontou assustada o topo da montanha que despontava por cima do telhado. O fogo a tomava. As sul-americanas reforçaram o fato de que as autoridades tardavam sempre em atuar, mais preocupadas com a organização do Carnaval, e a montanha queimava, enquanto eles, os turistas, lotavam as ruas do pueblo.

Após comer, nós também fomos em busca deste Carnaval. Esquecemos da montanha que ardia. E não encontramos a multidão temida pelas estrangeiras, não turistas, no restaurante brasileiro. Encontramos crianças fantasiadas, pessoas comendo tacos e um pequeno parque de diversões armado para a festa, contrastando sua montanha russa com a montanha de verdade às suas costas.

Na manhã desse mesmo dia, nós visitamos a montanha de verdade, 400 metros de subida pedregosa e íngreme, para chegar ao templo de Tepozteco. Um argentino, sócio de um outro bar da região, nos havia alertado que subiríamos mais de uma hora para nos deparar com uma pirâmide muito pequena. Foi justamente a modéstia desse templo o que mais me chamou atenção nessa viagem.

Tepoztlán vista da montanha Tlahuiltepec.
A pirâmide feita ao semi-deus Tepoztécatl era realmente pequena em comparação com as ainda desconhecidas pirâmides de Teotihuacan, por exemplo. Apesar disso, devido a este semi-deus representar entre outras coisas, a fertilidade, muitos sobem até lá com objetivos místicos. O funcionário do parque arqueológico instalado no local nos advertiu que ali em cima aparecia de tudo, desde casais preparados para fazer sexo, até pessoas amanhecidas em algum bar da região que decidiam acabar a festa no templo azteca.

A tradição por detrás daquelas pedras teria desaparecido, realmente. E, tal fato tivera um início pontual, em um 7 de setembro, nos anos 30 do século XVI, quando Cortés rendeu o maior sacerdote do templo e o obrigou, juntamente com todos os habitantes da região, que fosse batizado. O estrangeiro ressignificou a tradição. Aquele funcionário ainda nos disse que em Tepoztlán se comemora o 7 de setembro, que seria um dia festivo, como aquele Carnaval que nos esperava lá embaixo (as coincidências da data da rendição dos indígenas e da festa do Carnaval que ocorria naquele momento se suspenderam e sua relação nebulosa se impregnou em mim).

O funcionário ainda nos contou sobre Cuernavaca, onde está o palácio em que se instalou Cortés, além de outros detalhes sobre a dinâmica da colonização, os antigos rituais indígenas, até a atual presença dos narcos em Cuernavaca. Era realmente simpático e com vontade de contar tudo o que sabia. Perguntamos seu nome. Era um nome nahuatl que significava homem que veio à terra para fazer amigos. Trago apenas a tradução, pois a palavra nahuatl ficou esquecida no topo da montanha de Tlahuiltepec, junto com seu pequeno templo.

De volta à capital, ainda soubemos da morte de dois bombeiros que tentaram conter o incêndio na montanha. Talvez ela se vingue, de alguma forma, de tanto esquecimento e exploração.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Eles estão vivos

Vim para a Cidade do México porque me disseram que aqui vivia o escritor que estudo, um tal Juan Rulfo. Na verdade, ele faleceu em 1986, e suas duas obras canônicas, o livro de contos "O chão em chamas" (El llano en llamas) e o romance "Pedro Páramo" foram lançados na primeira metade da década de 50. Depois disso, o autor não publicou mais literatura. Em 1980, realizou-se aqui na capital mexicana, no Museo Nacional de Bellas Artes, uma exposição de suas maravilhosas fotografias. Era, portanto, também, um fotógrafo de qualidade. E foi isso que se conheceu de toda a sua obra até bem pouco.

Foi isso que conheci também até antes dessa viagem. Já aqui, me deparei com outras obras de Rulfo, em livros da Biblioteca Central da UNAM, cujo mural feito à maneira de mosaico com pedras de diversas regiões do México, pelo artista e arquiteto Juan O'Gorman junto com Gustavo Maria Saavedra e Juan Martínez, toma todo o prédio de doze andares de livros e salas de estudos. Há ali diversos livros com outras fotografias de Juan Rulfo (até o momento, tive contato no Brasil com o "100 Fotografias", publicado pela Cosac Naif, o Juan Rulfo photographer, versão em inglês de uma edição espanhola com outras tantas fotografias e o Oaxaca).

Biblioteca Central - UNAM (Mural de Juan O'Gorman)


Também me deparei com um livro editado pelo diretor da Fundação Juan Rulfo, Victor Jiménez, quem faz parte da bibliografia da minha dissertação, Alberto Vital, o professor que assessora meu intercâmbio e biógrafo de Rulfo e Jorge Zepeda, jovem doutorando que se especializou na recepção das obras escritas do mexicano. Nesse livro, me deparei com obras que me eram completamente desconhecidas, publicadas a partir dos manuscritos do escritor-fotógrafo. Primeiro, uma tradução do poema "Elegias a Diuno", de Maria Rainer Rilke, feita por Rulfo a partir de outras duas traduções do alemão para o espanhol, depois, anotações sobre algumas construções arquitetônicas do México. E, enfim, o texto "Castelo de Teayo" (Castillo de Teayo), uma espécie de conto em que o narrador é o próprio Juan Rulfo quem viaja em busca das ruínas desse castelo, localizado em um povoado em Veracruz.


Nenhuma de suas demais obras escritas simulam ao leitor a consonância entre autor e narrador que se encontra em Castillo de Teayo. Nunca Juan Rulfo me falou tão diretamente como através deste pequeno conto. Sabia que aqui sentiria maior proximidade com seus estímulos, com seus motivos, mas não esperava que fosse "ouvi-lo" tão diretamente na voz de narrador literário (não me refiro àquela voz das cartas à Clara Aparício, publicadas no livro Aire de las Colinas, em que a voz de Rulfo se dirige direta e unicamente a sua eterna amante).

Pelo instante em que durou aquela leitura, Juan Rulfo reviveu.

Ainda, nessa semana, após essa leitura maravilhosa (em todas as concepções que a crítica da literatura latino-americana vem bombardeando essa palavra) fui convidada para um almoço, pelo professor Vital, com uma especialista nas fotografia de Rulfo e com o arquiteto Victor Jiménez. Uma das frases de Jiménez a respeito da obra literária e fotográfica de Rulfo foi a responsável pelo desenvolvimento de minha pesquisa. E lá fui eu, conhecê-lo.

Escultura totonaca no Castelo de Teayo, 1950. Foto de Juan Rulfo (www.clubcultura.com) .


Nos encontramos em um restaurante espanhol (o que só sensibilizou minha habilidade, ainda que precária, de fazer relações; não pude deixar de pensar na ironia de discutirmos Juan Rulfo em um restaurante, enfim, criollo). Victor Jiménez e a doutoranda Paulina Villán Vargas já estavam sentados à mesa quando cheguei. O professor Vital nos apresentou. Até mesmo o "hola, mucho gusto" que eu disse ao arquiteto me pareceu ignorante. Sentei-me entre a doutoranda, mais jovem e com quem criei uma simpatia imediata, e o professor Vital, quem já conhecia. Escolhíamos a comida no cardápio em que tudo parecia saboroso quando chegou um senhor de cabelos de um branco brilhante, óculos de lentes redondas e aro de metal fino à frente dos olhos mel que ajudavam a compor sua expressão simpática. Era Pablo Rulfo, um dos três filhos de Juan Rulfo. Sentou-se ao meu lado, no lugar que lhe ofereceu o professor Vital.

Nem preciso dizer que fiquei quase totalmente muda nesse almoço. Falava apenas quando era imprescindível. E ouvia, porque me pareceu que o que mais me beneficiaria naquele momento era ouvir aquelas pessoas, aqueles nomes de bibliografia que na maioria das vezes (sempre, no meu caso) nós estudantes associamos a nomes de mortos. E eles mencionavam Rulfo: "tu padre sacó aquellas fotos, te acuerdas?", "sí, pero era muy chiquito cuando las tomó". O nome Rulfo ganhava vigor, vitalidade, ocupava um lugar à mesa. Ali, ao meu redor, naquele banquete platônico, todos estavam vivos. Diferente da surpresa que revela a leitura de Pedro Páramo, fui tomada por uma surpresa totalmente oposta. Eles estavam vivos! E me senti mais viva também, com ainda mais vontade de estudar, de conhecer, de saber e de continuar a adentrar esse caminho fantástico que escolhi, o de lidar com as obras de Juan Rulfo.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Viajo porque preciso, volto... por quê?

Semana em que as leituras para a pós-graduação se somam. E em que os problemas burocráticos para emissão da bolsa de estudos e para a inscrição na universidade, embora já assista às aulas, começaram a ficar mais dramáticos. Problemas esses que impedem com que vá a alguns museus, que com a credencial da UNAM seriam gratuitos, e que viaje para fora da cidade - o passeio que esperava, inclusive, não ocorreu, se adiou mais uma vez, aumentando ainda mais o mistério que me aguarda nas pirâmides aztecas.

Muito se esquivou nessa semana. Para o meu afã de conhecer mais, de observar milimetricamente, de dissecar tudo, o ar mexicano me soprou uma cautela quente de volta. Com o adiamento do passeio para Teotihuacan, passeei pelo centro da cidade, mais uma vez, mas agora com menos pressa, acompanhada, entendendo melhor algumas dinâmicas, que em meu primeiro passeio por ali me assustaram, e explorando melhor os edifícios que circundam a Plaza de la Constituición.

Dessa vez fui surpreendida pela multidão do domingo ensolarado. Os mexicanos realmente devoram cada centímetro desses quilômetros de espaços livres que possuem, junto com suas comidas callejeras inumeráveis. Nessa segunda caminhada pelo centro, conheci o Palacio Nacional, onde estão alguns imensos murais de Diego Rivera. No mais ostentador, conta-se a história mexicana com início em cenas da guerra entre indígenas e europeus na base do mural (aqueles com expressão de coragem ou de dor, esses com expressões de ódio), culminando, no alto da pintura, nas figuras de governantes campesinos que ostentam uma faixa com os dizeres "Tierra y Libertad".

Mural de Diego Rivera no Palacio Nacional

Entre os murais, uma moderna exposição sobre os mayas incrementa ainda mais esse afã de narrar sua história que se vê em todos os cantos da capital mexicana. Com algumas peças do Museo de Antropología e painéis interativos que simulam os diversos territórios maias ao longo da história, a exposição atraiu uma multidão ruidosa que observava tudo através das lentes de suas câmeras e celulares frenéticos. Eu mesma me posicionei grande parte da exposição atrás das lentes da minha pequena câmera, mas porque queria mostrar a uma grande amiga brasileira a cerâmica indígena. Mas as fotos não traduzem exatamente o fascínio que me causa a arte pré-colombiana, como já mencionei anteriormente e acho que continuarei a repetir até o fim da minha viagem.

A Plaza de la Constituición também colaborou para a narração do que é esse México que se mostra, cautelosamente, para mim. Uma majestosa exposição militar isola toda a praça, impedindo com que a conheça verdadeiramente (na primeira caminhada pelo centro, a praça já estava isolada pelos militares, mas a exposição ainda não tinha sido montada). A enorme bandeira ao centro da praça apenas deixa-se ver através do jogo de verde musgo e metal negro que a rodeia. E, mais impressionante, era a fila quilométrica de pessoas que se amontoavam para conhecer essa exposição. Eu a dispensei, sem receio.

E à frente da praça que se esquivou de mim, completamente tomada pelos militares, a Catedral me ofereceu suas entranhas. Participei de uma visita às "campanas" da igreja, que são sinos que se encontram em suas torres. Entramos passadas as seis horas, então logo as escadas de pedra tomaram o ar melancólico do início da noite. Lá em cima, ouvi a história de uma campana possuída, que matara a um dos meninos que no século XVI tinha a perigosa missão de entoá-la, movimentando o sino de toneladas com o próprio corpo. Para sinalizar sua maldição, o sino leva pintada uma cruz vermelha. O sino amaldiçoado olhava na direção da Plaza de la Constituición, lá embaixo, que bebia das luzes da noite recente, comungando com o militarismo tão exaltado em nossos países latino-americanos. O século XVI sobressaltou mais vivo do que nunca nessa noite na catedral.

Exposição do Exército Mexicano na Plaza de la Constitución vista de uma das torres da Catedral.

Mas ao mesmo tempo que uma sensação triste me invadia, a impressão que me causaram as ruas mais vazias do centro - e mais perigosas, segundo meus amigos mexicanos - me revelava que o México, sim, tem sua cara própria, apesar da imposição tão drástica da cultura ocidental. Caminhamos pelas ruas atrás do Palacio Nacional à procura de um altar feito à Santa Muerte que, segundo esses amigos, havia por ali, na rua. Me empolguei muito para tirar fotos, já que não estarei em novembro, na Fiesta de los Muertos, e não vou viver essa grande celebração. Perguntamos a um policial onde estava o altar, pois eles não tinham certeza da localização, e ele nos apontou para a frente. Por aí seguimos. Nada. Encontramos outra igreja de portais grandiosos e uma rua tomada por crianças, perguntamos a uma delas, não sabia informar. Andamos mais umas quadras e perguntamos a um vendedor de rua, ele nos apontou para a esquerda. Seguimos. Nada. Perguntamos para um outro, nos apontou a direita. Nada. E de repente nos veio a impressão de que talvez não quisessem nos revelar onde de fato estaria o altar, pois nitidamente estávamos ali apenas para tirar algumas fotos, quem sabe postá-las no Facebook, para que fossem celebradas ali. Talvez, não quisessem que blasfemássemos seu altar feito com tanto respeito e fé. O México esquivou-se mais uma vez.

E justo por isso me senti bem. Que se esquivem, que se escondam e guardem sua cultura de nossos olhares blasfemadores. E se guardem de toda a ostentação militar-cristã do centro do Zócalo. Que se mantenham vivos, mesmo que às esquinas sombrias das ruas abandonadas do centro que ninguém visita. É um consolo, de qualquer forma, saber que em algum lugar escondido do Zócalo o México que mais me agrada está muito vivo celebrando a sua Santa Muerte.

PS: E nessa sexta-feira foi o dia de São Valentim. Exibiram, na maravilhosa Cineteca Nacional, ao ar livre e de graça, o filme brasileiro Viajo porque preciso, volto porque te amo. Sabia que não era uma história de amor, apesar do titulo. É a história do nosso Nordeste, a história da transposição de águas do São Francisco, a história da pobreza que assola grande parte do nosso país. Mas também a história de uma viagem. A história de alguém que procura motivos para ter partido e, logo em seguida, para regressar. Os meus motivos, para ambas ações, eram claros, mas agora tudo começa a se embaçar. Precisava dessa viagem? Agora, me parece mais do que nunca que sim. Volto por quê? Ainda não sei.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Revista Capitu

Agora, os posts deste blog serão publicados, também, pela Revista Capitu. O primeiro post já está lá, com umas pequenas modificações.

Nesse fim de semana, farei um passeio muito esperado. Em breve estará tudo aqui!

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Duas semanas

México, ainda trocamos olhares de estranhamento.
Essa foi a semana do assentamento da rotina, da confecção da agenda, da organização, já que estou aqui para estudar, antes de tudo, talvez. Não, não acredito que seja assim porque antes de tudo estão essas novas sensações que me assaltam a cada dia vivido nesse país. E elas vêm de diferentes direções, pertencem a distintos motivos. Me tomam, seja pelo gesto de um senhor que encontrei casualmente no trolebús que pego para ir à universidade (ele disse que sabia que eu estudava na UNAM, pois me via todos os dias no ônibus e, depois que disse ser uma intercambista brasileira, me deu seu cartão, dizendo que podia escrever-lhe caso me faltasse alguma coisa), seja pela garoa que deixei molhar meu rosto com pleno gozo uma noite voltando da aula (e disseram que só choveria em julho e que o ar seco incomodaria cada vez mais), seja pelas ruas de Copilco onde meu grupo de intercambistas se juntou à procissão de estudantes que passam por ali diariamente e que fazem com que os carros mal possam circular (aqui, na verdade, os carros não circulam, ziguezagueam pelas avenidas tentando achar brechas no tráfego intenso, infringindo todas as leis de trânsito existentes e ainda por ser inventadas).

Agora, caminho pelas ruas próximas à casa onde estou... morando... já distraída, já perdida em pensamentos, sem me ater a cada esquina, a cada detalhe, para não perder a rua em que deveria entrar. Já não confundo mais um chili (pimenta) com um nopal (cacto comestível) perdido num taco aparentemente inocente (nem me iludo mais com o "no pica mucho" [não é muito apimentado] dos mexicanos). Já sei usar o "guey" e o "híjole", recursos enfáticos do espanhol mexicano, usados para chamar a atenção de alguém e para expressar assombro/surpresa, respectivamente. Mas ainda somos desconhecidos, eu e este país. Nessa semana, fechei-me num bairro (aqui se diz "colonia"), numas ruas repetidas, no meu caminho que já virou caminho de sempre (casa-universidade-casa), porque o cansaço da primeira semana foi tão intenso que quis - precisei - descansar. E adiei algumas sensações que ainda estão por vir.

Troquei um passeio a Teotihuacan por um passeio de trajinera (que eu diria ser uma gôndola mexicana) em Xochimilco, onde naveguei pelas águas calmas dos canais da delegação ao sudoeste da Cidade do México, onde algumas tribos indígenas pré-colombianas se instalaram e costumavam também navegar. Sobre as águas destes canais, ouvi os mariachis cantar suas músicas típicas, tomei cerveja com pimenta, limão e sal (qualquer item comestível tem sua versão que "pica" por aqui) e cantarolei músicas brasileiras para os mexicanos ouvir.

E, ainda na bucólica trajinera, vi a senhora que, ao lado de um adorno de caveira, na varanda de uma casa à beira de um dos canais, me dirigia olhares de estranhamento. Em meio à minha semana de descanso, os olhos anciões me lembraram:

- Ainda não te desvendei, México. E nem você a mim.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Uma semana

Não quis escrever antes porque não acredito, de maneira alguma, que as primeiras impressões são as que ficam. Então, deixei passarem os sete dias e o ar do México assentar em mim, mesmo que ainda de leve - digamos que em uma semana ainda há primeiras impressões resistentes - para poder começar esse diário de viagem.

As primeiras impressões que ficam ainda - vamos começar com elas, logo de cara - são todas em relação à geografia e meteorologia da Cidade do México. O ar é extremamente seco, por isso a poluição estanca. É como nos dias mais críticos do inverno de São Paulo. Mas pior, ainda pior. O nariz amanhece dolorido, alguns dizem que é comum sangramentos, eu, felizmente, não os tive, e os olhos ficam vermelhos e ardem. A altitude também incomoda a quem alterna São Paulo com a praia da Baixada Santista e está acostumada com a brisa do mar. A cabeça dói às vezes e qualquer escada me deixa ofegante - principalmente as do metrô que, como em São Paulo, têm de ser subidas às pressas para que a multidão não atropele.

Mas isso está escrito em qualquer guia da Cidade do México, e espero que, com o tempo, nada mais dessas coisas incomode tanto.

O que talvez está agradável é o friozinho em comparação com o calor infernal que está em São Paulo (e isso vindo de uma admiradora incontestável do calor).

Agora, as pessoas, que acredito serem o mais importante do lugar. O autor que me trouxe até aqui, Juan Rulfo, acredito que também se dedicava às pessoas e acreditava no poder que elas têm de acrescentar à geografia e à meteorologia do lugar o elemento final para tornar aquele lugar, um lugar. São simpáticas. Muy amable, dizem, em tom poético, sempre que agradecem a uma gentileza. E não poupam gentilezas, ainda quando eu tomo fotos do Museu Frida Kahlo, sem saber que não poderia fazê-lo; sorriem e seguem com extrema gentileza, me dando um mapa do lindo, e caro, bairro de Coyoacán para que não me perca.

Agora, importante. As gentes não são tão facilmente descritas. Há quem diga que, no Brasil, nossas gentes também são repletas de gentileza e de sorrisos, e quem mora em São Paulo sabe que o amor está em extinção. Aqui a gentileza faz parte da etiqueta. Todos a têm. Além de amables, são extremamente formais. Um brasileiro - e os argentinos que conheci aqui, também - facilmente se surpreende com a formalidade para certas ocasiões que nós levamos com tanta naturalidade.

- Eu pensei que talvez a questão da hierarquia fosse forte resquício das culturas pré-colombianas, alimentada pelo colonizador espanhol, e contribui para essa formalidade toda. No Brasil, embora a hierarquia existisse, a comunicação entre corte e povo era direta, com as amas de leite, por exemplo, e já ouvi que Dom Pedro saía às ruas e lidava com as gentes. Mas estou fazendo sociologia de boteco, embora aqui não tenha boteco, não como os nossos.

Os lugares. Enormes, espaços enormes, distâncias enormes. Aqui, se não tem carro, tem que andar e andar, haja perna para tanto andar. A Ciudad Universitaria, normalmente chamada por C.U, é maior do que  a Cidade Universitária do Butantã, e mais ostentadora. Ir para um prédio errado no horário da aula significa ter que fazer uma viagem para outro lado do campus, algo como trinta ou quarenta minutos, para poder achar a aula - isso aconteceu comigo, naturalmente. Os circulares são lotados - não é nossa exclusividade - e o campus sempre cheio de gente. E parece mais democrático, a UNAM não é tão elitista como a USP.

Fui ao Zócalo, onde fica a Praça da Constituição e onde estava o centro político de Tenochtitlán, submerso, literalmente, pelas igrejas suntuosas dos espanhóis. Vi uma galeria no chão, aproximei-me e perguntei a um senhor que também a observava, do que se tratava: - Son las ruinas del templo del gran Montezuma. Arrepiei.

O Museu de Antropologia. O museu mais majestoso que já visitei. E não consegui terminar de ver tudo porque, como disse sobre as coisas aqui no D.F., é enorme. A pergunta que domina é: como puderam subjugar tanta cultura? Não que eu ache que uma cultura é melhor que outra, ou seja, a dos indígenas melhor do que a espanhola, apesar de achar que a relação dos indígenas com a natureza era mais digna. Havia ali forte hierarquia e atrocidades, naturalmente, os índios eram seres humanos, afinal. Mas como puderam diminuir de tal forma a importância daquelas culturas, daqueles templos? Enfim, na Cidade do México, nós literalmente caminhamos sobre essa história. A cultura pré-colombiana aqui existe.