quarta-feira, 12 de março de 2014

Dia da mulher, 12 anos escravo e o senhor do trolebús

1. Passei o dia 8 de março na Cidade do México.

"Femnicidios alcanzan nivel de crisis en México", anuncia uma reportagem on-line do final do ano passado que me chegou apenas hoje. Passei o Dia Internacional da Mulher justamente no país com o maior número de feminicídios da América Latina. Uma vez perguntei a um conhecido, antes de vir para cá, como tinha sido sua estadia no país. Seus olhos radiaram quando descrevia as experiências que havia vivido. Perguntei se achava que seria o mesmo comigo, mulher. Abaixou a cabeça e disse: "mulher é complicado".

Ser mulher na Cidade do México é nunca ter que abrir a porta do carro, sempre há um homem para abri-la, é, na maioria das vezes, descer dos ônibus com a ajuda de um homem que se posiciona na saída com a mão estendida, é sempre entrar primeiro, quando acompanhada de homens, é ter alguns vagões especiais nas linhas de metrô e não precisar enfrentar os vagões mais lotados pela maioria masculina. Muitas e muitos, ao ler essas linhas, deverão pensar o velho "tá reclamando do quê?". Explico. Ser mulher na Cidade do México é também ser olhada por todos os homens, quando desacompanhada de outros homens, dentro de um vagão de metrô, na rua, num restaurante (raramente falam alguma coisa, mas os olhares são intimidantes), é ter que aceitar que um amigo te acompanhe até a porta do metrô para saltar quando não está no vagão preferencial, é ler os vários cartazes com o número para denunciar os recorrentes assédios ocorridos nos transportes públicos, e anotar o número no celular, é escutar de um homem num bar sábado a noite que é impossível que tenha saído com as amigas apenas para beber e conversar (como ele estava fazendo com os seus amigos homens). Ser mulher no México é ter medo de andar sozinha, de pegar táxi sozinha, de entrar em vagão de metrô vazio. Muito disto também acontece no Brasil. Portanto, melhor seria dizer: ser mulher, em nossos países latino-americanos predominantemente machistas é tudo isso também.

Mas eu sigo caminhando, enfrentando e lutando pela minha liberdade, do meu jeito, onde quer que seja.

2. Vi o "12 anos escravo" na Cineteca Nacional.

Não sou muito de ver filmes que ganham Oscar, mas este, como a muitas pessoas, me despertou curiosidade antes mesmo de levar o prêmio. Qualquer filme que levante, de uma forma ou de outra, a bandeira em defesa dos negros é do meu agrado de antemão. Ganhou o Oscar quando eu viajava por Tepoztlán. Uma semana depois, consegui convencer um dos meus rommates a me acompanhar na majestosa Cineteca Nacional. Que merece um parêntesis.

(A Cineteca tem dez salas de exibição, além de um telão para exibição ao ar livre; estão em cartaz, geralmente, os ditos filmes alternativos, europeus, latino-americanos, asiáticos e estadunidenses que, de alguma forma, dialogam com a lógica artística e não meramente de entretenimento; é financiada pelo Consejo Nacional para la Cultura y las Artes e a entrada INTEIRA custa pouco menos de dez reais).

Para mim é um filme bonito e mereceu o prêmio, apesar de não ter me surpreendido. Mas me comoveu. Em diversos momentos me contive para que as lágrimas que umedeciam meu rosto não caíssem. E a plateia, que lotava a maior sala da Cineteca, por sua vez, riu. Isso aconteceu em várias cenas, inclusive na cena que achei a mais forte do filme. O protagonista Solomorn Northup (Chiwetel Ejiofor) toca violino e os demais escravos dançam na sala de jantar dos seus senhores, sob ordem desses, quando a esposa do senhor atira uma garrafa no rosto da escrava interpretada pela também ganhadora do Oscar, Lupita Nyong'o. Após interromperem a dança pela violência da mulher branca, o senhor pede para que continuem. Os negros voltam aos seus passos desajeitados, meio contrariados, enquanto o corpo desfalecido da escrava é arrastado a um canto. A sala se encheu de risadas nessa cena. Na cena final do filme, quando Northup reencontra sua família e pergunta à filha quem é o homem ao seu lado, ao que esta responde que é o seu marido, novamente as gargalhadas ganharam a sala. Ao subirem os letreiros as pessoas ligavam os celulares, conversavam sobre trivialidades, levantavam como se tivessem acabado de ver um filme da Pixar. Discutindo com o meu colega, concluímos, ou melhor, justificamos a insensibilidade geral nessa sessão de 12 anos escravo pelo fato de que a escravidão negra não é algo próximo ao mexicano comum. Ainda assim, fiquei surpreendida (talvez mesmo no Brasil não houvesse comoção, não sei, talvez isso não seja importante, não sei).

3. O senhor do trolebús.

Moro num bairro relativamente longe da UNAM. São em torno de 20 minutos sem trânsito para chegar à faculdade. Mas essa expressão "sem trânsito" só é tornada verdadeira após às 23 h. Ou seja, sempre que vou à universidade enfrento aproximadamente 50 minutos dentro do velho trolebús. Velho não é um termo carinhoso, é uma verdade. O trolebús só não é mais velho do que as "peseras", pequenas vans que circulam pela cidade e que às vezes é difícil acreditar na capacidade de ainda se movimentarem vistas suas condições. O trolebús é um ônibus elétrico, lento, com poucos assentos e normalmente lotado (o sistema de metrô é muito mais acessível que o de São Paulo, mas para ir à UNAM teria que fazer duas baldeações, a la linha amarela para linha azul de São Paulo, o que no final se converte no tempo do percurso do ônibus elétrico).

Hoje, quando ia à aula da manhã notei que um senhor, de aproximadamente cinquenta anos, com cor amarronzada indígena, bigode a la mexicana, e cabelos meio grisalhos, sentava em um dos bancos na fileira paralela à minha. Notei-o talvez por causa da gravata colorida, sem nó, que pendia do pescoço por cima da blusa de tactel azul e cinza encardida. Segurava um copo de isopor do El Jarocho, uma cafeteria que compete com os inúmeros Starbucks espalhados pela cidade. Na outra mão trazia uma pena, como essas que se usava para escrever. Enquanto as pessoas entravam e saíam, se acotovelavam, pisavam nos pés uns dos outros, e nos meus também, o senhor molhava a pena no café e desenhava nas laterais do copo. Acho que o líquido preto não era o suficiente para imprimir qualquer traço ao copo de isopor, mas o senhor se deteve no serviço por bastante tempo, até o ônibus esvaziar. Quando já éramos poucos passageiros, deixou o copo de lado, deu um nó perfeito na gravata e ergueu a mão com a pena. Soltou-a no ar. A pena rodopiou várias vezes antes de cair lentamente no chão do ônibus. O senhor repetiu esse movimento inúmeras vezes. Eu o observava com total atenção. E tive vontade de chorar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário